segunda-feira, 13 de maio de 2013

Entre Deus e o Diabo


“O Manco Entre Deus e o Diabo” de António Sá Gué

O Manco é uma figura que procura a sua unidade, enquanto ser humano, entre a dura realidade em que sobrevive e a busca de uma religiosidade que parece não lhe trazer respostas. Uma figura que se busca entre o seu mundo interior e exterior. O Manco - Entre Deus e o Diabo é um grito em silêncio de uma revolta contida. 

Prefácio de Ernesto Rodrigues, Presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes

«Sentiu os vapores na traqueia a penetrarem nos pulmões, sentiu arrefecer o seu ser, sentiu os músculos a relaxarem mas sem nunca perder a rigidez de quem está vivo, de quem sente, de quem está sempre alerta. Sentiu os dentes penetrarem no couro duro que lhe tinham colocado na boca. Sentiu o bisturi do médico, a frieza do metal a entrar na pele, sentiu apertarem-lhe ainda mais o torniquete que lhe garrotava a perna, sentiu a desarticulação do joelho, nenhum movimento de bisturi lhe escapou, apesar dos vapores continuarem a penetrar profundamente em si, a retirar-lhe capacidades intelectuais e físicas mas não o sentir. Era como se estivesse num pesadelo, um pesadelo do qual queria acordar mas não conseguia. Um torpor profundo impedia-o de se mexer, de levantar um único dedo para fazer um sinal, um gesto de compaixão, apesar de o pretender fazer com todo o seu querer. Era tudo tão real e paradoxalmente ilusório que lhe parecia estar em um outro mundo. Uma dimensão paralela à realidade, a dimensão dos enigmas da vida, a dimensão dos amargores sempre bebidos com sofreguidão, de um só trago, pela taça de libações sangrantes, deglutidos sem a ternura, sem perfumes, sem a maciez do amor. Seguiu a linha das marcas dos pensamentos gotejantes de sangue vivo, apapoilado, marcados em si com ferros em brasa. 
Deixou-se ir naquele enlevo doentio da dor, cavalgou no dorso do rugir do leão, trepou as paredes como animal demoníaco, desafiou a gravidade e suspendeu-se no tecto da sua gruta recôndita como morcego hematófago e, imóvel, ali ficou a alimentar-se do seu sofrimento, a deixar crescer dentro dele aquele animal que lhe rasgava o peito e o devorava a partir de dentro. Ali ficou a olhar-se do alto, a sentir-se, a perscrutar os movimentos do bisturi, a observar-se mutilado mas ainda a sentir a dores fantasmas de uma parte de si já inexistente.»

Disponível na Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real...
[também do autor os títulos: “Ultreia – Caminho Sem Bermas”, ”Na Intuição do Tempo”, “As Duas Faces da Moeda”, “Fermento da Liberdade”, “Fantasmas de Uma Revolução”, “Contos dos Montes Ermos”, “Quadros da Transmontaneidade”]

Sem comentários:

Enviar um comentário