quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Comércio tradicional


“Comércio Tradicional” de Vítor Nogueira



RODA
«Naquele tempo só havia a quarta classe.»
Trabalha desde os doze e está com sessenta
e sete. Já foi trolha, motorista, sapateiro.
Na verdade, só tem medo das alturas.

Certo dia preparou a cabeça para poder
andar à roda. E partiu para o Luxemburgo.
«Há terras que a gente nem imagina que existem.»
Regressava quase sempre pela festa de S. Lázaro,

o presente e o passado a uma estrada de distância.
Com os anos percebeu uma coisa curiosa:
«os rapazes que ficaram queriam ter a minha vida
e eu queria ter a vida dos rapazes que ficaram.»



Embora nunca seja nomeada, a cidade de província que Vítor Nogueira evoca neste livro é Vila Real (Trás-os-Montes), cujo teatro dirige há vários anos. Quem nunca tenha experimentado os deliciosos covilhetes e cristas de galo da Gomes, mítica pastelaria referida em dois dos poemas, dificilmente identificará o cenário destas deambulações urbanas. 
Mas isso pouco importa. A Vila Real que o autor descreve é em tudo semelhante a muitas outras povoações do interior do país: lugares onde os hábitos de convivência social se dissolvem à medida que vão fechando as pequenas lojas antigas, esmagadas pela aparição dos centros comerciais contruídos na periferia (junto às auto-estradas e aos IP’s), símbolos de um desenvolvimento económico tantas vezes ilusório.
Na sua «arrastada melancolia», este conjunto de poemas funciona como o canto do cisne de um mundo comercial em vias de extinção. Nogueira vai de porta em porta, da drogaria para o café e do café para a barbearia, etc., aos ziguezagues, encontrando pelo caminho uma galeria de figuras retratadas a preceito: do emigrante que quer levar couves para a consoada em França aos clientes que entram à procura de um «sabão mais forte» (ou apenas de um golpe do destino que lhes ofereça os milhões da lotaria).
O que se ergue diante de nós, pouco a pouco, é «todo um ecossistema, uma rede infinita / de ligações humanas» que requer um observador sistemático, capaz de enquadrar as fotografias com «atenção aos pormenores». Nalguns casos, o poeta ouve falar da vida «esfregada a pedra-pomes» e do medo do progresso, que gere o mundo com «zeros e uns». Noutros, inventa nomes solenes (Apolo, Aquiles, Gilgamesh) para existências vulgares. Quanto aos versos propriamente ditos, elevam-se quase sempre acima das realidades descritas, oscilando entre a nostalgia e a metafísica, mas sem nunca se levarem demasiado a sério. Não há pathos que resista à urgência de «ir pôr moedas no parquímetro».
No fim, cumprem-se as profecias. Fecha o Excelsior, café dos anos vinte. Fecha a drogaria, «quartel-general» dos sábados. Quem não se resigna, entristece («Feridos abandonados no campo de batalha / despedem-se do chão onde aprenderam a fumar») ou ironiza («Andamos demasiado sensíveis. / Talvez devêssemos cortar na cafeína»). O título do último poema, “Franchising”, é já o sinal de uma derrota previsível, mesmo não sabendo «o que vão ser as cidades amanhã».
José Mário Silva, blogue Bibliotecário de Babel [Texto publicado no n.º 77 da revista Ler]

Disponível na Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real...
[também do autor os títulos “Bagagem de Mão” e “Mar Largo” “Modo Fácil de Copiar uma Cidade”pela &etc. e “Que Diremos Nós Que Viva”, “Comércio Tradicional” e “Senhor Gouveia” pela Averno]

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