“Comércio
Tradicional” de Vítor Nogueira
RODA
«Naquele tempo só
havia a quarta classe.»
Trabalha desde os doze e está com sessenta
e sete. Já foi trolha, motorista, sapateiro.
Na verdade, só tem medo das alturas.
Certo dia preparou
a cabeça para poder
andar à roda. E partiu para o Luxemburgo.
«Há terras que a gente nem imagina que existem.»
Regressava quase sempre pela festa de S. Lázaro,
o presente e o
passado a uma estrada de distância.
Com os anos percebeu uma coisa curiosa:
«os rapazes que ficaram queriam ter a minha vida
e eu queria ter a vida dos rapazes que ficaram.»
Embora nunca seja
nomeada, a cidade de província que Vítor Nogueira evoca neste livro é Vila Real
(Trás-os-Montes), cujo teatro dirige há vários anos. Quem nunca tenha
experimentado os deliciosos covilhetes e cristas de galo da Gomes, mítica
pastelaria referida em dois dos poemas, dificilmente identificará o cenário
destas deambulações urbanas.
Mas isso pouco importa. A Vila Real que o autor
descreve é em tudo semelhante a muitas outras povoações do interior do país:
lugares onde os hábitos de convivência social se dissolvem à medida que vão
fechando as pequenas lojas antigas, esmagadas pela aparição dos centros
comerciais contruídos na periferia (junto às auto-estradas e aos IP’s),
símbolos de um desenvolvimento económico tantas vezes ilusório.
Na sua «arrastada melancolia», este conjunto de poemas funciona como o canto do cisne de um mundo comercial em vias de extinção. Nogueira vai de porta em porta, da drogaria para o café e do café para a barbearia, etc., aos ziguezagues, encontrando pelo caminho uma galeria de figuras retratadas a preceito: do emigrante que quer levar couves para a consoada em França aos clientes que entram à procura de um «sabão mais forte» (ou apenas de um golpe do destino que lhes ofereça os milhões da lotaria).
Na sua «arrastada melancolia», este conjunto de poemas funciona como o canto do cisne de um mundo comercial em vias de extinção. Nogueira vai de porta em porta, da drogaria para o café e do café para a barbearia, etc., aos ziguezagues, encontrando pelo caminho uma galeria de figuras retratadas a preceito: do emigrante que quer levar couves para a consoada em França aos clientes que entram à procura de um «sabão mais forte» (ou apenas de um golpe do destino que lhes ofereça os milhões da lotaria).
O que se ergue diante de nós, pouco a pouco, é «todo um ecossistema, uma rede
infinita / de ligações humanas» que requer um observador sistemático, capaz de
enquadrar as fotografias com «atenção aos pormenores». Nalguns casos,
o poeta ouve falar da vida «esfregada a pedra-pomes» e do medo do progresso,
que gere o mundo com «zeros e uns». Noutros, inventa nomes solenes (Apolo,
Aquiles, Gilgamesh) para existências vulgares. Quanto aos versos propriamente
ditos, elevam-se quase sempre acima das realidades descritas, oscilando entre a
nostalgia e a metafísica, mas sem nunca se levarem demasiado a sério. Não
há pathos que resista à urgência de «ir pôr moedas no parquímetro».
No fim, cumprem-se as profecias. Fecha o Excelsior, café dos anos vinte. Fecha a drogaria, «quartel-general» dos sábados. Quem não se resigna, entristece («Feridos abandonados no campo de batalha / despedem-se do chão onde aprenderam a fumar») ou ironiza («Andamos demasiado sensíveis. / Talvez devêssemos cortar na cafeína»). O título do último poema, “Franchising”, é já o sinal de uma derrota previsível, mesmo não sabendo «o que vão ser as cidades amanhã».
No fim, cumprem-se as profecias. Fecha o Excelsior, café dos anos vinte. Fecha a drogaria, «quartel-general» dos sábados. Quem não se resigna, entristece («Feridos abandonados no campo de batalha / despedem-se do chão onde aprenderam a fumar») ou ironiza («Andamos demasiado sensíveis. / Talvez devêssemos cortar na cafeína»). O título do último poema, “Franchising”, é já o sinal de uma derrota previsível, mesmo não sabendo «o que vão ser as cidades amanhã».
José Mário Silva,
blogue Bibliotecário de Babel [Texto publicado no n.º 77 da revista Ler]
Disponível na
Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real...
[também do autor os títulos
“Bagagem de Mão” e “Mar Largo” “Modo Fácil de Copiar uma Cidade”pela &etc.
e “Que Diremos Nós Que Viva”, “Comércio Tradicional” e “Senhor Gouveia” pela
Averno]
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