quarta-feira, 13 de julho de 2016

Lenda, Carlos Azevedo Ensemble

 

cd “Lenda” Carlos Azevedo Ensemble
encomenda do 9.º Festival de Jazz do Porto

«Na composição, quem manda é a escrita da música clássica, mas, quando se senta ao piano, Carlos Azevedo transforma-se num homem do jazz. Hoje à noite, no Rivoli do Porto, o pianista vai mostrar como estes dois mundos se ligam por uma "ponte": no caso, uma obra original a que chamou "Lenda". Quem já a leu ou ouviu fala de uma peça de mestre.
Há 15 anos que o pianista Carlos Azevedo se dedica à composição, mas na sua já razoavelmente vasta produção de originais a obra que logo à noite revelará no Festival de Jazz do Porto exigiu-lhe um desafio inédito. Não apenas por se tratar de uma encomenda do próprio festival, o que ele considera "um estímulo", porque "há coisas que nunca se fariam se não fossem encomendadas", mas principalmente porque a formação escolhida para exprimir a sua escrita, um "ensemble" com nove músicos, o obrigou a rever o seu passado como compositor e como pianista.
"Lenda", assim se chama a obra, representa pois um novo marco no percurso de Carlos Azevedo, de 35 anos, um músico de formação clássica mas que há uma década se rendeu de corpo e alma ao jazz. Dividida em três partes, "Lenda" é uma obra com uma duração média de 35 minutos que "tem um fio condutor, uma espécie de romance com uma história principal que toda a gente entende, mas, depois, tem montes de outras histórias, de lados sombrios que é necessário saber interpretar", diz Carlos Azevedo. Vertida em mais de 800 compassos que ocupam mais de 70 páginas escritas, a obra "é complicada nalguns processos de escrita, mas só quem toca é que entende essa dimensão, assim como quem a ouve duas ou três vezes". Esta característica, garante o pianista, não obstaculiza, no entanto, o seu imediato entendimento por parte do público. Não se espere uma peça com a linearidade própria do jazz clássico, ao estilo de um Duke Ellington, por exemplo, porque as marcas europeias e do modalismo estão presentes. "Mas a música é clara, embora eu não a tenha escrito com a preocupação de evitar problemas no seu entendimento", diz Carlos Azevedo. "Penso que tem um lado apelativo à primeira vista. Algumas pessoas que a tocaram, acabaram o primeiro ensaio e saíram a cantar ou trautear melodias", acrescenta - a melodia, de resto, é uma das principais marcas de Carlos Azevedo.
Um dos vértices essenciais para se vislumbrar a peça passa pela formação escolhida, "que não é uma 'big band', mas também não é um quinteto. Tem sete sopros com naipes que não são completos, como é o caso dos trombones. Não tem graves, não tem saxofones barítonos, tem dois altos e uma novidade: uma flauta. É uma formação que condiciona muito a escrita", explica Carlos Azevedo. No desenvolvimento do projecto de composição, a memória da formação clássica do pianista encontra-se "em tudo", porque, "enquanto escrita, a minha escola é completamente clássica". E onde mora o jazz, pergunta-se? "O jazz está na prática. Escrever jazz - não estou a dizer tocar - pressupõe um conhecimento das suas formas, do ritmo e de determinados conceitos harmónicos. Pode-se escrever jazz sem se saber que se escreve jazz - alguns dos grandes 'standards' eram canções da Broadway. Mas, neste caso, o escrever uma música para uma determinada função pressupõe que haja uma atitude jazzística à partida. Tenho lá alguns aspectos que são típicos da escrita para 'big band'. Por exemplo, os uníssonos que servem para atingir o 'punch' não são fórmulas da escrita clássica". Apesar dos elogios que se vão ouvindo por parte dos que leram ou escutaram os ensaios da sua obra, Carlos Azevedo não a hipervaloriza no seu percurso pessoal. "Esta obra ainda não representa a minha maturidade como músico. Ainda não cheguei lá, sou muito novo, embora o Mozart tenha escrito o 'Requiem' com 30 anos... A maturidade representa o encerramento de um ciclo e neste momento não diria que fechei um ciclo, embora tenha adquirido uma certa prática de escrita, para 'big band' ou para outras coisas", explica. Admirador de Bill Evans - um pianista que "sinto como meu, pela maneira dele sentir e de tocar" -, Carlos Azevedo é também um devoto de Thelonious Monk, principalmente no que se refere "à sua irreverência enquanto compositor que se libertou daquelas forma estereotipadas das 'cançõezinhas da Broadway' - isto sem qualquer sentido pejorativo, porque essas canções são belíssimas - e que se lançou em outros tipos de escrita". A sua prática, porém, é feita principalmente de uma atitude ecléctica que o coloca tão à vontade nos ritmos das Caraíbas, a produzir arranjos para obras de Gershwin, ou a aprofundar as memórias originais de Mingus, na banda que partilha com Laurent Filipe.
Produto de uma geração de músicos de jazz do Porto, "que apareceu como um surto, de repente", Carlos Azevedo manteve-se fiel à paixão de uma música que lhe chegou tarde aos ouvidos - só aos 22 anos começou a dedicar o essencial da sua atenção e do seu trabalho ao jazz. Nos dias que correm, o jazz perdeu vigor na cidade, "não há tanta gente a aparecer, embora alguns dos que se têm mostrado sejam excelentes músicos", e as suas principais imagens de marca são os herdeiros dessa geração. Exceptuando, claro está, músicos de primeira linha como Hélder Gonçalves, Raul Marques ou Mário Barreiros, que deixaram de colocar o jazz na primeira ordem das suas atenções. Em certa medida, o "ensemble" que logo acompanhará Carlos Azevedo é uma síntese do melhor que a vaga do jazz portuense ainda conserva: desde o "velho resistente" Mário Santos (sax tenor), ao implacavelmente seguro António Augusto Aguiar (contrabaixo), passando pelo discreto mas eficiente José Luís Rego (sax alto) e ainda pelo excelente João Moreira (trompete), até Jorge Alexandre Costa (flauta), Acácio Salero (bateria) e Susana Maria Santos Silva (trompete). Para além, evidentemente, de Carlos Azevedo ao piano.» Manuel Carvalho, “Público”

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