cd “Lenda”
Carlos Azevedo Ensemble
encomenda
do 9.º Festival de Jazz do Porto
«Na
composição, quem manda é a escrita da música clássica, mas, quando se senta ao
piano, Carlos Azevedo transforma-se num homem do jazz. Hoje à noite, no Rivoli
do Porto, o pianista vai mostrar como estes dois mundos se ligam por uma
"ponte": no caso, uma obra original a que chamou "Lenda".
Quem já a leu ou ouviu fala de uma peça de mestre.
Há 15
anos que o pianista Carlos Azevedo se dedica à composição, mas na sua já
razoavelmente vasta produção de originais a obra que logo à noite revelará no
Festival de Jazz do Porto exigiu-lhe um desafio inédito. Não apenas por se
tratar de uma encomenda do próprio festival, o que ele considera "um
estímulo", porque "há coisas que nunca se fariam se não fossem
encomendadas", mas principalmente porque a formação escolhida para
exprimir a sua escrita, um "ensemble" com nove músicos, o obrigou a
rever o seu passado como compositor e como pianista.
"Lenda",
assim se chama a obra, representa pois um novo marco no percurso de Carlos
Azevedo, de 35 anos, um músico de formação clássica mas que há uma década se
rendeu de corpo e alma ao jazz. Dividida em três partes, "Lenda" é
uma obra com uma duração média de 35 minutos que "tem um fio condutor, uma
espécie de romance com uma história principal que toda a gente entende, mas,
depois, tem montes de outras histórias, de lados sombrios que é necessário saber
interpretar", diz Carlos Azevedo. Vertida em mais de 800 compassos que
ocupam mais de 70 páginas escritas, a obra "é complicada nalguns processos
de escrita, mas só quem toca é que entende essa dimensão, assim como quem a
ouve duas ou três vezes". Esta característica, garante o pianista, não
obstaculiza, no entanto, o seu imediato entendimento por parte do público. Não
se espere uma peça com a linearidade própria do jazz clássico, ao estilo de um
Duke Ellington, por exemplo, porque as marcas europeias e do modalismo estão
presentes. "Mas a música é clara, embora eu não a tenha escrito com a
preocupação de evitar problemas no seu entendimento", diz Carlos Azevedo.
"Penso que tem um lado apelativo à primeira vista. Algumas pessoas que a
tocaram, acabaram o primeiro ensaio e saíram a cantar ou trautear
melodias", acrescenta - a melodia, de resto, é uma das principais marcas
de Carlos Azevedo.
Um dos
vértices essenciais para se vislumbrar a peça passa pela formação escolhida,
"que não é uma 'big band', mas também não é um quinteto. Tem sete sopros
com naipes que não são completos, como é o caso dos trombones. Não tem graves,
não tem saxofones barítonos, tem dois altos e uma novidade: uma flauta. É uma
formação que condiciona muito a escrita", explica Carlos Azevedo. No
desenvolvimento do projecto de composição, a memória da formação clássica do
pianista encontra-se "em tudo", porque, "enquanto escrita, a
minha escola é completamente clássica". E onde mora o jazz, pergunta-se?
"O jazz está na prática. Escrever jazz - não estou a dizer tocar -
pressupõe um conhecimento das suas formas, do ritmo e de determinados conceitos
harmónicos. Pode-se escrever jazz sem se saber que se escreve jazz - alguns dos
grandes 'standards' eram canções da Broadway. Mas, neste caso, o escrever uma música
para uma determinada função pressupõe que haja uma atitude jazzística à
partida. Tenho lá alguns aspectos que são típicos da escrita para 'big band'.
Por exemplo, os uníssonos que servem para atingir o 'punch' não são fórmulas da
escrita clássica". Apesar dos elogios que se vão ouvindo por parte dos que
leram ou escutaram os ensaios da sua obra, Carlos Azevedo não a hipervaloriza
no seu percurso pessoal. "Esta obra ainda não representa a minha
maturidade como músico. Ainda não cheguei lá, sou muito novo, embora o Mozart
tenha escrito o 'Requiem' com 30 anos... A maturidade representa o encerramento
de um ciclo e neste momento não diria que fechei um ciclo, embora tenha
adquirido uma certa prática de escrita, para 'big band' ou para outras
coisas", explica. Admirador de Bill Evans - um pianista que "sinto
como meu, pela maneira dele sentir e de tocar" -, Carlos Azevedo é também
um devoto de Thelonious Monk, principalmente no que se refere "à sua
irreverência enquanto compositor que se libertou daquelas forma estereotipadas
das 'cançõezinhas da Broadway' - isto sem qualquer sentido pejorativo, porque
essas canções são belíssimas - e que se lançou em outros tipos de
escrita". A sua prática, porém, é feita principalmente de uma atitude
ecléctica que o coloca tão à vontade nos ritmos das Caraíbas, a produzir
arranjos para obras de Gershwin, ou a aprofundar as memórias originais de
Mingus, na banda que partilha com Laurent Filipe.
Produto
de uma geração de músicos de jazz do Porto, "que apareceu como um surto,
de repente", Carlos Azevedo manteve-se fiel à paixão de uma música que lhe
chegou tarde aos ouvidos - só aos 22 anos começou a dedicar o essencial da sua
atenção e do seu trabalho ao jazz. Nos dias que correm, o jazz perdeu vigor na
cidade, "não há tanta gente a aparecer, embora alguns dos que se têm
mostrado sejam excelentes músicos", e as suas principais imagens de marca
são os herdeiros dessa geração. Exceptuando, claro está, músicos de primeira
linha como Hélder Gonçalves, Raul Marques ou Mário Barreiros, que deixaram de
colocar o jazz na primeira ordem das suas atenções. Em certa medida, o
"ensemble" que logo acompanhará Carlos Azevedo é uma síntese do
melhor que a vaga do jazz portuense ainda conserva: desde o "velho
resistente" Mário Santos (sax tenor), ao implacavelmente seguro António
Augusto Aguiar (contrabaixo), passando pelo discreto mas eficiente José Luís
Rego (sax alto) e ainda pelo excelente João Moreira (trompete), até Jorge
Alexandre Costa (flauta), Acácio Salero (bateria) e Susana Maria Santos Silva
(trompete). Para além, evidentemente, de Carlos Azevedo ao piano.» Manuel
Carvalho, “Público”
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