sexta-feira, 17 de outubro de 2014

quando for grande quero ser uma árvore

“Pertence à água a escolha dos náufragos” de Maria José Quintela

As palavras são esteios que se apartam das biografias íntimas. se não à nascença pelo menos quando se movem independentes dos juízos de bem e de mal. concebo a existência de lugares interditos à inconsciência das mãos que escrevem. que para cada pestanejo incidem-me mil pensamentos. e nada se finda na razão.
A escolha é um caminho infinitamente bifurcado. não escolher é já uma escolha. no mínimo existem dois lados. o que aponta um sentido e o que aponta o seu contrário. Tudo se joga nesta linha dicotómica. tudo o mais são desvios gratuitos.
Eu porém não sou barco nem sou leme. a água desdiz-me o rumo. como certo tenho os espelhos e as rememorações. os véus infindáveis e os ínfimos sopros. um exílio onde a respiração é um esforço ferido de precariedade e a dor não tem código de entendimento.
É íngreme a escalada cuja sombra resvala para o intervalo abrupto onde nunca se delata. Mas sempre haverá uma palavra a ousar a escarpa onde o eco se sobrepõe ao delírio das vozes. uma palavra que interrogue apenas e resista como epígrafe suspensa. porque todos os dias são dias de adormecer no colo ávido do abismo.
A mim interessa-me o embalo da água no esforço do náufrago. sobretudo interessa-me narrar a corrente como quem vem à tona respirar. E me perguntam de que se alimentam as ilhas eu respondo com a sede.

«...
não é nada. é só uma súbita isquémia a apagar a memória das coisas não importantes. porque a vida também é encenação e as boas intenções não são exclusivas do inferno.
quando a cegueira for vidência e a verdade uma missão talvez emerja o contorno da virtude que não é representável. entretanto e entre uns e outros salva-se o silêncio dos inocentes. mais tarde corrigem-se os ângulos do erro. mesmo que seja tarde.
não é nada. é só um pensamento líquido na margem do esquecimento. como se a morte já tivesse começado a expropriar-nos.
...»

«...
acredito no amor sem adjectivos e na flor que não promete a eternidade. no rasto dos anjos e dos pássaros do sul. nos eclipses e nas searas de trigo.
acredito em ti e não acredito no tempo. nem nas poses ostensivas dos falsos profetas que nos ignoram para nos diminuir. adivinho-lhes o trejeito calculado no conforto do disfarce.
e no entanto tudo é tão pouco e tão breve. e nem a pele é resgate.
falta-me o entendimento dos videntes. que a mais tenho a evidência do chão.
...»

«...
dentro do texto não se desfazem os nós nem se sangram os segredos.
escava-se até à raiz e prova-se o sabor da terra.
antes do texto é preciso morrer por dentro.
...»


Natural de Vila Real, onde nasceu em 1955, Maria José Quintela reside em Lamego, desde 1959. Licenciada em Enfermagem pela Escola de Enfermagem de S. João no Porto, exerce atualmente funções na unidade hospitalar de Lamego, do Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, com a categoria profissional de Enfermeira Supervisora.

Apenas tem a declarar que quando for grande quer ser uma árvore.

Disponível na Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real... | Traga-Mundos – lhibros i binos, cousas i lhoisas de l Douro an Bila Rial...
[também disponível da autora: “O mundo fica irreal, mas não me importa”; “Vozes do Douro – Antologia de Textos Durienses”, “palavras que o Douro tece – antologia de textos durienses contemporâneos” organização e coordenação José Braga-Amaral]


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