“Agora e na Hora da
Nossa Morte” de Susana Moreira Marques
Susana Moreira
Marques viajou até às aldeias de Trás-os-Montes para encontrar pessoas com
pouco tempo de vida, familiares em vigília e o vazio deixado pelos que morrem. Numa
paisagem marcada por grandes distâncias, onde Portugal acaba e é esquecido, num
tempo de fim e perante a nossa mortalidade, começamos a perceber o que é
importante.
«Quando soube que
não sobreviveria à doença e que não poderia continuar a caminhar no vasto campo
em frente de sua casa, o caçador que gostava de flores pediu misericórdia, que
o matassem depressa, por favor. Morreu numa cama sem dizer últimas palavras de
significado e nesse dia nasceu no quintal um cachorro que nunca viria a ser cão
de caça; foi então levado para um caixão e velado no centro da sua sala, os
pássaros empalhados com as asas abertas olhando-o de cima do armário. Na
varanda, com vista para a terra que tinha sido a sua maior alegria e que
supunha ir gozar em pleno na velhice, tinha o vaso preferido que deu ainda flor
na Primavera após a sua morte.»
«À pergunta “como escrever sobre a morte?”, Susana Moreira Marques (Porto, 1976) respondeu com um livro que rompe convenções. Não é uma reportagem, ou talvez seja, mas não nos moldes tradicionais onde a ortodoxia do jornalismo manda que o repórter se apague da história tanto quanto lhe seja possível. Isto é, o mais possível. A autora decidiu mostrar-se, incluir na narrativa as transformações que a inevitabilidade da morte do outro - estamos a falar de sentenciados à morte por doença - provocaram também nela. Foi um processo longo que lhe mudou o olhar e, no limite, as mãos. “Há coisas sobre as quais não se pode escrever como sempre se escreveu. Algo muda. Primeiro os olhos, depois o coração - ou os nervos ou aquilo a que os antigos chamavam alma - e, finalmente, as mãos.” É a confissão à entrada de Agora e na Hora da Nossa Morte, título pedido de empréstimo a um livro de poemas de José Agostinho Baptista para uma narrativa que não cabe em nenhum género definido da escrita.
De Junho a Outubro
de 2011, em três viagens distintas (uma que corresponde à Primavera, com as
cerejas; outra ao Verão, com as romarias de Agosto; e outra ao Outono, com o
fim das colheitas), a jornalista e o fotógrafo André Cepeda foram até ao
planalto transmontano acompanhar o quotidiano dos técnicos do projecto de
cuidados paliativos ao domicílio da Fundação Calouste Gulbenkian. Andou por
muitas aldeias, visitou muitas casas, falou com muita gente e escreveu sobre a
morte como nunca se escreveu, tentando apanhar-lhe o tom, adequar-lhe a
linguagem, dando-se tempo, libertando-se de lugares comuns, nunca cedendo à
lamechice ou provocando a emoção fácil. Num exercício de uma enorme contenção e
cuidada atenção ao outro, pouco adjectivo, evitando a quase sempre aborrecida
descrição das técnicas de saúde prestadas (porto seguro para fintar a emoção),
conta como é estar muito perto da morte sem que o leitor alguma vez sinta o
incómodo de entrar num território que não é o dele e com a eficácia da grande
literatura: uma enorme capacidade de acordar a emoção em quem lê.
O livro arranca com
notas soltas, escrita fragmentada pontuada pelo silêncio, com o não-dito
implícito, a pedir a intervenção do leitor, um aproximar ao tema a partir de
conversas, da partilha cúmplice, dando conta do modo como ao longo do processo
foram caindo convenções, de como a realidade não se compadece com a literatura
- é por vezes muito mais feia, nada romântica nas transformações físicas e nas
outras que a doença causa. Ela e eles sós ante a estranheza imensa,
socorrendo-se de quem já experimentou representar a morte através das palavras.
Tolstói, com A Morte de Ivan Ilitch, o homem que, agonizando, olha a vida e se
arrepende do que não viveu ou do modo como viveu. E Torga, para a dureza de
Trás-os-Montes, mas também poemas de Larkin, de Cecília Meireles, como se a
poesia fosse mais eficaz com o transcendente, com a estranheza. Na segunda
parte do livro, o ângulo aperta-se. Escolhem-se protagonistas, narrando-lhes a
história e dando-lhes a voz da primeira pessoa. E não há intrusão quando Susana
fala com Paula, mãe de Ana e de Luís, mulher de 40 anos que anda descalça na
procissão à espera de um milagre, ou talvez não. Nem quando conversa com Elisa
e Sara, as filhas de Rui, o homem que quer saber tudo da doença e prepara a
própria morte. E nem por sombras há invasão do espaço onde moram João e Maria,
o casal de octogenários que viveram em Angola mas regressaram quando todos
abandonaram as colónias e agora se despedem um do outro a olhar a paisagem em
frente. São os retratos. Paula. Elisa e Sara por causa de Rui. João e Maria por
causa de João. E nós por eles.
São histórias
exemplares entre as muitas que Susana encontrou e quis representar, porque uma
das grandes questões é a de como representar a realidade que ninguém quer ver
representada. Medo antigo. Ver a morte do outro é projectar a própria, e nessa
projecção há a ideia de contágio. A morte como algo que se cola e de que se
foge. Susana Moreira Marques não fugiu dela aqui, e comunicou com uma mediação
poética que resulta de uma rara sensibilidade para tratar o eterno pasmo e o
eterno pudor ante o momento mais íntimo, o da morte. “Onde está Ivan Ilitch?
Onde está a agonia, como a escreveu Lev Tolstói? Onde estão os homens olhando
para trás, para o momento em que se fizeram homens? Onde está o arrependimento
e o perdão? E a satisfação, se a houve, dos anos felizes? Os doentes sofrem e
parecem não ter forças para pensar, colocar-se questões morais - e já nem sequer
parecem preocupados (é isto específico do nosso tempo?) com o paraíso, o
inferno, o juízo final. Querem apenas um pouco mais de vida, querem um pouco
mais de tempo para acreditar que o corpo vence; todos querem, com uma força
desproporcionada, talvez delirante, continuar de olhos abertos.” Por fim,
imagens. Os rostos, o lugar, a águia delimitando fronteiras mais do que
geográficas e a narrativa a fugir à delimitação literária. É um livro que
interpela, que magoa porque a realidade é mesmo assim, mas que nunca é coitado,
não clama por piedade. Uma livro sem “rogai por nós”. Porque a morte não é boa
nem é má. É. E Susana Moreira Marques escreve-a num livro de estreia como só os
grandes escritores são capazes.» [Isabel Lucas, Público]
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