“O Porco de
Erimanto” de A.M. Pires Cabral
Um coração doente é o melhor tesouro que um homem pode ambicionar. Bem sei que eles acham que não. Ainda ontem esteve um deles a falar na televisão: que estamos em Maio, que Maio é o mês do coração, que é preciso olharmos pelo coração, vigiar o peso, fazer exercício, não fumar… Tretas! O que eles querem dessa forma é despojar-nos de uma das nossas maiores riquezas, que é a morte rápida, oportuna e inopinada, provocada por um enfarte, para nos entregar de mão beijada à morte lenta, preenchida de dores, provocada por algum cancro ou coisa assim. Ou, se calhar ainda pior, à vida puramente vegetativa do mal de Alzheimer. Achas que ganhamos com a troca? Hã? Quem aceitará morrer às dentadas de um cão rafeiro, podendo morrer arrebatado por uma águia-real?
Grande Prémio de
Conto Camilo Castelo Branco 2011.
Plano Nacional de
Leitura: livro recomendado para o Ensino Secundário como sugestão de leitura.
«Nove fábulas sobre
a doença e a mortalidade, e uma alegoria monstruosa.
Um autodidacta torna-se historiador emérito. Mas a História é um domínio demasiado vasto. Especializa-se então na História da civilização grega. Depois, em mitologia grega. Depois, mais especificamente, nos trabalhos de Hércules. E destes, especializa-se na questão do javali de Erimanto. Tem uma sede de conhecimento insaciável, uma febre da especialização indomável. Em consequência disso, o homem que sabe tudo sobre o javali de Erimanto vai-se tornando num javali. O processo de "suinificação", com todos os horrores de uma metamorfose, é a apoteose do conhecimento. Transforma-se o amador na coisa amada, e o espectáculo é deprimente.
Um autodidacta torna-se historiador emérito. Mas a História é um domínio demasiado vasto. Especializa-se então na História da civilização grega. Depois, em mitologia grega. Depois, mais especificamente, nos trabalhos de Hércules. E destes, especializa-se na questão do javali de Erimanto. Tem uma sede de conhecimento insaciável, uma febre da especialização indomável. Em consequência disso, o homem que sabe tudo sobre o javali de Erimanto vai-se tornando num javali. O processo de "suinificação", com todos os horrores de uma metamorfose, é a apoteose do conhecimento. Transforma-se o amador na coisa amada, e o espectáculo é deprimente.
Esta é a mais
sintética fábula de "O Porco de Erimanto", colectânea de dez contos
de A.M. Pires Cabral. Autor prolífico, a sua actividade de contista foi mais
produtiva em meados dos anos 80, com "O Diabo Veio ao Enterro",
"Memórias de Caça" e "O Homem que Vendeu a Cabeça"; "O
Porco de Erimanto" é uma versão revista e aumentada deste último título.
São dez as fábulas, geralmente de cunho fantástico, algumas divertidas, outras
francamente assustadoras.
Há um funcionário
com fumos de poeta, alojado numa pensão estadonovista, que vê a sua sanidade
mental em perigo por causa de um misterioso buraco na parede. Um homem que vende
a cabeça à ciência. Outro que luta com a sua sombra. Um desgraçado que
ultrapassa um desgosto amoroso com ataques de incontinência urinária. Pires
Cabral confunde de propósito a fisiologia e a psicologia, de modo que nunca
sabemos o que é natural ou patológico, o que é absurdo ou lógico. Alguns destes
sujeitos são vítimas de partidas, outros nasceram sob estrela funesta, mas
todos vivem em constante angústia.
Duas ou três
histórias têm um cunho mais divertido, como aquela em que o director de uma escola
se arroga o direito de inspecções sanitárias intrusivas, numa sátira à ditadura
e aos legalismos burocráticos em geral. Mas outros momentos são de puro terror.
Não deve haver em português nenhum texto sobre o cancro tão perturbador como
"Desidério". Tudo começa com a descoberta de um quisto nas costas do
protagonista. Mas aquele sinal, uma excrescência que podia ser rapidamente
removida, vai ficando, vai dominando a vida do seu portador, que com ele cria
uma relação íntima, umbilical, quase de ternura. Pires Cabral chama ao cancro
uma "autofagia", porque é uma doença que nos consome por dentro. E
depois descreve em detalhe esses medos e devastações. Não são páginas
sentimentais. É uma monstruosa alegoria que lembra Ballard: "É então fabricada
uma réplica exacta de cada autófago, de material sintético, que não só é
perfeitamente comestível como reproduz o sabor da carne humana e contém um alto
teor proteínico. Tais réplicas são colocadas à disposição de cada doente, nos
seus aposentos. E então os doentes vão-nas consumindo à medida dos seus
impulsos". E continua: "Fala-se de certos efeitos secundários
desagradáveis, entre os quais a tendência para uma progressiva transformação da
autofagia em antropofagia. Mas nada se provou ainda. E os autófagos ricos podem
devorar-se em efígie (...)" (p. 196).
Em todos estes
contos há intimações de mortalidade, vistas com uma frieza sarcástica mas não
despojada de humanidade; mas, com "Desidério", A.M. Pires Cabral
escreveu uma aterradora transposição da mais inominável das doenças
contemporâneas, a mais activa forma actual da nossa finitude. O caranguejo
trespassado por uma lança é a imagem que abre as portas ao delírio imaginativo,
à fábula pavorosa, à doença como condição humana essencial: "Cada qual
deve acalentar dentro de si uma doença. Mens sana in corpore sano - para
quê?!... Devemos é ter dentro de nós um relógio que nos lembre periodicamente
quia pluvius sumus, que temos tributos a pagar à mecânica da carne. E que cada
um pague na moeda de que dispuser. (...) Por isso eu digo: a cada um sua
moléstia" (p. 178). Não é só a escrita impecável que nos agarra nestas
fábulas: é não podermos fingir que não é nada connosco.»
Pedro Mexia,
Ípsilon – Público
Disponível na
Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real... |
Traga-Mundos – lhibros i binos, cousas i lhoisas de l Douro an Bila
Rial...
[também do autor os
títulos: “O Cónego”e “A Loba e o Rouxinol” (romance); “O Diabo Veio Ao
Enterro”, “O Porco de Erimanto” e “Os Anjos Nús” (contos); “Que
Comboio É Este”, “Arado”, “Antes Que O Rio Seque” e “Cobra-D’Água” (poesia);
“Trocas e Baldrocas ou com a natureza não se brinca” com ilustrações de Paulo
Araújo (infanto-juvenil); “Língua Charra – Regionalismos de Trás-os-Montes e
Alto Douro” Volume I – A-E, 568 p. e Volume II – F-Z, 606 p.; “Páginas de Caça na Literatura de
Trás-os-Montes” (selecção de textos e organização, antologia); “Aqui e Agora
Assumir o Nordeste” (antologia) selecção e organização de Isabel Alves e
Hercília Agarez; “As Águas do Douro” coordenação Gaspar Martins Pereira,
“Telhados de Vidro” n.º 18]
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