“Memórias de Céu e
Inferno” de A. Passos Coelho
O inferno é uma
invenção pré-histórica de certo fanatismo religioso, destinado ao suplício de
almas malvadas. O paraíso fora concebido para premiar eternamente as almas boas;
localiza-se no céu, em sítio incerto. Não obstante os avanços tecnológicos no
domínio da astronáutica, ainda se não vislumbrou o preciso lugar desse almejado
destino das almas sãs, cujos corpos se finaram. Do inferno nunca nenhum sábio
ousou definir a topografia, e não existe notícia de que alguém se tenha
interessado em descobrir-lhe o paradeiro. Por mim, creio que o inferno é nesta
vida e não está equipado com caldeirões efervescentes, terríficos braseiros,
sofisticados aparelhos flageladores. Cada pessoa pode ter o seu inferno. O meu
foi a fome, o frio, a miséria que vivi até aos oito anos num casebre imundo de
Peneda…. Completamente alheio à tragédia que assolava a Europa, com a avalanche
militar nazi subjugando a Bélgica, a Holanda, o Luxemburgo e parte da França,
posto que detida pelos soviéticos em Stalinegrado, e repercutindo-se gravemente
no nosso país em dificuldades económicas que nos impunham graves restrições
alimentares, eu era feliz em Chaves. Vivia feliz na simpática, bonita,
acolhedora, farta cidade fronteiriça flaviense. Vivia no céu!
«O livro de A.
Passos Coelho Memórias de Céu e Inferno é um verdadeiro retrato social do
Portugal dos anos 40 do século XX. Repleto de descrições fortes e recorrendo a
um estilo literário único, o autor descreve de forma ímpar os afetos e os
dramas de uma época extraordinariamente difícil.» [Douro Hoje]
«Primeiramente
devemos salientar que o texto que se segue não pretende ser uma recensão
crítica da obra em epígrafe, por não sermos detentores de competências para
tanto, mas apenas uma opinião resultante de uma leitura atenta e interessada do
livro em apreciação.
Na linha de
tantos médicos que optaram por ser simultaneamente escritores, de que, entre
nós, temos como exemplos Júlio Diniz, Miguel Torga e Fernando Namora, A. Passos
Coelho, com uma notável carreira de Pneumologista no campo da Medicina, dá-nos,
em “Memórias de Céu e Inferno”, uma obra de grande interesse narrativo, que
seguimos com progressivo interesse, à medida que as páginas se vão sucedendo,
prendendo-nos na teia bem urdida que por vezes nos arrebata, forçando-nos a
resistir à tentação de caminhar para a última página e descobrir se o final é
feliz (ou nem por isso..).
Ao longo do livro,
tentamos descobrir a razão do título; primeiramente fazemos a ligação com a
vida atribulada do protagonista, cujo nascimento coincidiu com a morte da mãe,
ficando entregue a uma tia que, pobre, cheia de filhos para alimentar e de
problemas tremendos para resolver, numa vida arrastada e muito sofrida, honrou
o compromisso assumido perante a irmã, no leito de morte, de o tratar como se
seu filho fosse.
A tia, a primeira
guardiã, a quem se seguiriam duas outras, que a morte acabaria por levar,
deixando o jovem por duas vezes à beira do Inferno, quando do seu passamento,
servindo de lenitivo os tempos passados no Céu, assim pelo autor considerado
como os períodos de proteção da extremosa mãe que D. Guida fora e, sobretudo,
de D. Céu, que, de omnipresente mãe adotiva, passou sucessivamente a amante
suprema e, a seu tempo, a sua primeira e bem amada Esposa.
É aliás deveras
interessante a definição que o autor nos dá de inferno: “uma invenção
pré-histórica, de certo fanatismo religioso, destinado ao suplício de almas
malvadas. O paraíso fora concebido para premiar eternamente as almas boas;
localiza-se no céu, em sítio incerto…Do inferno nunca nenhum sábio ousou
definir a topografia, e não existe notícia de que alguém se tenha interessado
em descobrir-lhe o paradeiro. Por mim, creio que o inferno é nesta vida…cada
pessoa pode ter o seu inferno. O meu foi a fome, o frio, a miséria que vivi até
aos oito anos num casebre imundo de Peneda…”.
Mais tarde veremos
que o inferno, para o nosso protagonista, não acabou aqui, mas antes se fez
sentir ainda noutros momentos, se bem que com outras características,
diferentemente penosas. O pior momento foi o da morte da Querida Céu, Esposa
Amada, que, ao falecer nos seus braços, com sempre ela desejara, após
prolongada doença, o fez mergulhar de novo no Inferno, agora mais profundo que os
anteriores.
Em contrapartida,
no dizer do nosso herói, em Chaves “vivia feliz na simpática, bonita,
acolhedora, farta cidade fronteiriça flaviense. Vivia no céu!”.
Céu e Inferno, de
que ele receava não se libertar tão cedo, após a morte da Esposa, talvez até
nem o desejasse, pelo menos de início. Mas a vida ainda tinha muitas surpresas
para ele. Na pessoa da antiga enfermeira de Céu, Ema, ele viria de novo a
reencontrar o Amor e, claro, o Céu.
Ema, que o
estimulou a compilar as memórias da sua vida, até então, a que anuiu com grande
relutância, pois não se sentia capaz de tal. Mas com o auxílio de Ema, tudo se
tornou mais fácil. Até o título, que só na última frase do livro ficamos a
conhecer: “Memórias de Céu e Inferno”. Por outras palavras, a centralidade de
Céu na vida de Silvestre é incontornável; e, fora dela, ainda que um tanto
exageradamente, só parece haver Inferno.
Mas agora há Ema. E
o Céu voltou de novo. Para ficar, espera-se, deseja-se!
Nota muito
positiva, pois, para este “Memórias de Céu e Inferno”, de A. Passos Coelho,
escrito numa linguagem acessível mas com algumas imagens apelando a forte
erudição por parte dos leitores, nada que o recurso a um bom dicionário não
resolva. E um enredo bem tecido, que prende da primeira à última página. Destacando
sempre a enorme beleza de umas das regiões mais prendadas de Portugal, centrada
no Douro, e a memória de um País dos tempos de Salazar, que convém não
desconhecer, porque de memória importante se trata. Até para compreender melhor
o presente e atuar adequadamente no futuro.
Estão pois de
parabéns o Autor e a Editora, pela obra de que vivamente recomendamos a
leitura.
Disponível na
Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real... |
Traga-Mundos – lhibros i binos, cousas i lhoisas de l Douro an Bila
Rial...
[também do autor os
títulos: “Gente da Minha Terra” (contos), “Histórias Selvagens” (contos),
“Zélia” (romance), “Mais Gente da minha Terra” (contos)]
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