segunda-feira, 17 de outubro de 2016

O cónego - o nordeste transmontano


“O Cónego” de A. M. Pires Cabral

«NESSA NOITE, ANTES DE DORMIR, e como o sono me fizesse negaças, reflecti um pouco sobre o ponto em que me encontrava. A impressão que tinha era a de que estava como um cego abandonado sem cão e sem bengala num lugar desconhecido.
Na verdade, sentia-me cada vez mais incapaz de atingir a verdade. As contradições entre testemunhos eram tão numerosas e em pontos tão decisivos, as interpretações dos mesmos factos pelos diferentes informadores tão díspares, que parecia que estavam a contar histórias diferentes sobre personagens diferentes. A verdade tornava-se assim um desiderato remoto, cada vez mais difícil de alcançar.
Para piorar as coisas, às vezes sentia que se instalava em mim uma progressiva aversão pela história do Cónego. Que ele tinha marcado a vida de muita gente, isso tinha, incluindo a de todos aqueles com quem eu conversara já e certamente a de muitos mais. De que maneira a marcara, conseguia eu ir descortinando nos testemunhos que me iam dando dele, nas próprias inflexões da voz — amistosa ou subtilmente hostil — com que falavam. Mas valeria a pena ir além disso? Que me importava a mim, afinal, que o Cónego tivesse sido um santo ou um pecador, um sonhador ou um oportunista, um liberal ou um unhas-de-fome? Que tivesse sido generoso ou egoísta, sincero ou hipócrita, um homem notável pelas virtudes ou um canalha da pior espécie? Um sábio ou um ignorante? Um cínico ou um ingénuo? Claro que sentia o apelo da classe a influenciar-me os juízos: o Cónego era um dos meus. E o padre Agostinho, cuja versão exaltava as virtudes do Cónego e silenciava (ou relativizava) os defeitos, também era um dos meus. Mas sentia igualmente que não podia nem devia permitir que um preconceito corporativo me obstruísse com pedregulhos inamovíveis o caminho para a verdade.
Mas o que de facto me apetecia era pôr uma pedra definitiva sobre o assunto. Simplesmente era tarde. Envolvera-me de tal maneira que as próprias pessoas continuariam a carrear para mim, fragmento a fragmento, as suas versões da história, mesmo sem eu lho pedir. Achava-me condenado, como um grilheta, a continuar a fossar naquele húmus malsão. Ou, como um Sísifo esgrouviado, a rolar incessantemente monte acima um calhau que cada novo testemunho fazia recuar até ao sopé.»

Um jovem padre começa a sua vida a paroquiar uma pequena aldeia no nordeste trasmontano, onde está ainda muito viva a memória de um certo Cónego - espécie de figura tutelar e personagem controversa, que logo atrai a sua curiosidade: anjo ou demónio? Apostado em reconstituir a figura do Cónego, recolhe, na sua busca da verdade, os testemunhos mais desencontrados, entre os quais procura penosamente abrir caminho. A obra O Cónego é um romance compósito, por vezes com laivos de policial, outras vezes de picaresco, ora comovente, ora divertido. 
A. M. Pires Cabral - não enjeitando embora a herança de Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro e Agustina Bessa-Luís - pretende sobretudo nesta obra contar uma história de forma desenvolta, à sua maneira muito pessoal, e ao mesmo tempo recriar o ambiente rural nordestino nas primeiras décadas do século passado.

«Como com os bons livros ocorre várias são as portas de acesso a "O Cónego", o mais recente romance de A. M. Pires Cabral. [...] Nunca conheceremos o cónego, pela mesma razão por que nunca ninguém nos conhecerá a nós, pois nunca ninguém conhece ninguém.» Osvaldo Silvestre, Público

Disponível na Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real... | Traga-Mundos – lhibros i binos, cousas i lhoisas de l Douro an Bila Rial...
[também disponível do autor os seguintes títulos: “A Loba e o Rouxinol” (romance); “O Diabo Veio Ao Enterro”, “O Porco de Erimanto”, “Os Anjos Nús” e "A Navalha de Palaçoulo" (contos); “Como Se Boch Tivesse Enlouquecido”, O Livro dos Lugares e outros Poemas”, “Que Comboio É Este”, “Arado”, “Antes Que O Rio Seque”, “Cobra-D’Água”, “Gaveta do Fundo” e “A Noite Em Que A Noite Ardeu” (poesia); “Trocas e Baldrocas ou com a natureza não se brinca” com ilustrações de Paulo Araújo (infanto-juvenil); “Língua Charra – Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro” Volume I – A-E, 568 p. e Volume II – F-Z, 606 p.; “Páginas de Caça na Literatura de Trás-os-Montes” (selecção de textos e organização, antologia); “Aqui e Agora Assumir o Nordeste” (antologia) selecção e organização de Isabel Alves e Hercília Agarez; “As Águas do Douro” coordenação Gaspar Martins Pereira; “Telhados de Vidro” n.º 3, n.º 6, n.º 9, n.º 11, n.º 18, n.º 20, n.º 21; “Guerra Junqueiro: A Musa Dual” (antologia) introdução, selecção de textos e organização de A.M. Pires Cabral]

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