“Ultrajes na Guerra
Colonial – Reminiscências de furriel de cavalaria” de Leonel Olhero
edição de autor
«(...) baseia-se
num diário de alguém que nasceu em Aveçãozinho, Vila Real, e nesta estação de
caminho-de-ferro partiu em 11 de Janeiro de 1971 para as Caldas da Rainha,
daqui para Santarém, nova estação no Porto, seguindo-se embarque no Uíge, o
autor irá narrar as suas deambulações num Esquadrão Panhard, essencialmente em
Bula e na circunvizinhança. É uma literatura memorial por vezes cáustica,
Leonel Olhero não esconde muitas zangas e azedumes, deixa-nos alguns parágrafos
belíssimos e em dado momento atira uma revelação que seguramente irá aqui
suscitar larga controvérsia, ao descrever um acto torcionário e um homicídio
que ele atribui à figura iconográfica de Salgueiro Maia. Vamos por partes.
No princípio, temos o transmontano que se adapta a custo à engrenagem militar,
há para ali muitas saudades do Marão e um somatório de bonomia: “Nas Caldas da
Rainha conheci os senhores Cross, Galho, Pórtico e Paliçada, que me deram cabo
da paciência. A dona G-3, de quem aprendi a não me separar. A menina Parada, de
má memória, porque nela perdi pedaços da minha rica vida. O menino Pré,
demasiado económico e muito forreta, um safado!, um sem vergonha”. Sentiu-se
malquistado em Santarém, há ali um bom número de reparos a cavalgaduras e
cretinices. Aqui estudou blindados Panhard, Daimler, Chaimite e Fox. Seguiu
para Cavalaria 6 no Porto, é aqui que lhe dão guia de marcha para Cavalaria 7
em Lisboa e em 25 de Agosto ruma para a Guiné.Torna-se num dos sargentos do Esquadrão Panhard 3432. Atravessa o Mansoa em João Landim e chega e Bula. Em Setembro é destacado para Nhamate, passam por Binar que ele classifica por estéril povoado e lá chegam a Nhamate, definido como lugar ermo e triste onde a vida era irreal e todos cediam o corpo à morte: “Em Nhamate a vida corroía-se-me lenta, o meu relógio não andava e tudo me era vago. E era assim que, naquele tédio, um homem se fazia à morte. Deslumbrantes pores-do-sol arquitectavam-nos ausências e sentenciavam-nos a penosos silêncios recônditos e melancólicos”. Descobre que a natureza estava viva, sente o empanturramento de horas preguiçosas, deslumbra-se uma trovoada tropical: “Uma trovoada, com carácter primitivo e sagrado, apavorou-nos. Receoso, o sol estremeceu de inquietação e correu a esconder-se. Numa embriaguez de luzes, relâmpagos cintilaram em ziguezagues de fogo, bateram nas trevas e apanharam relâmpagos em resposta. De alto a baixo, raios riscaram rasgando fundo os céus. Irrequietos, os trovões estalaram implacáveis vibrando de tronco em tronco e em cada folha, assustando aves e ribombando pelos caminhos do céu imenso num estampido ensurdecedor, enquanto que o vento, carregado dos cheiros da terra e do odor da selva, bradou com fúria e em rajadas hirtas e tudo impeliu numa maluca confusão”.
É numa viagem num sintex, quando foi a Bula buscar salários, que Olhero nos dá uma descrição de grande beleza, que mais realça pela contenção dos adjectivos: “Para lá das desviadas margens, num sussurro, naquele rio largo como uma promessa via-se água que penetrava na brumosa mata de onde, desafiando nos céus altas fasquias, se erguiam crescidas e seculares árvores. Por causa das investidas da nossa artilharia, com olhos cansados de procurar, vi cepos definhados com galhos despidos e rasgados. Braços vegetais abertos que nos desejariam abraçar e onde poisavam centenas de colónias de coloridos periquitos (…) Na tona da água bandos de periquitos de rabo de junco rasavam, chispavam à nossa passagem e rabiscavam hieróglifos (…) Inumeráveis abutres repugnantes e agoirentos que poisavam nos poleiros altos da sossegada e densa ramagem, alteavam-se impassíveis, estremecendo penosamente as enormes e aborrecidas asas. Alguns, mais tímidos, alavam para o escuro daquele tão intemporal bosque e ali ficavam à espera de olhos tristes e adiados”. E fiquemos com esta pálida amostra de uma linda viagem de sintex que até hoje não tinha lido, é cativante o deslumbramento do autor por tudo quando capta neste rio. Desforra-se a apanhar rolas, assim melhora o rancho, sempre tão igual na sua sopa do costume e arroz cozido com rodelas de salsicha.
E de Nhamate volta a Bula, começa o rosário de escoltas, Binar, São Vicente, Có, Teixeira Pinto ou Pelundo são algumas metas obrigatórias. De vez em quando vai a Bissau, no Pidjiquiti encontra o Zé Luís, empregado do café A Brasileira, em Vila Real. E assim chegamos a 1972. Há lá muita bebedeira em Bula, maledicência, gente quezilenta, ouvem-se flagelações, chegou a hora das perdas humanas, seguem-se férias na metrópole.
No regresso, temos o ramerrão em Bula, com colunas dentro do sector. Em Outubro, Olhero conhece Fatu Camará, chegou o momento de doces recordações eróticas. Estamos em Novembro, altura em que Salgueiro Maia terá descoberto um falso caçador que andaria à procura de o emboscar. E ele escreve como o Capitão de Abril desaferrolhou a língua do preso: “Mandou que se pusesse em cima de uma chapa de zinco, de onde saiam fios metálicos ligados ao motor de um Unimog e depois, com um ar de triunfo de galo de combate, num divertido vozeirão, disse a um seu militar: Dá à chave! Satisfeito da vida, meliante e cínico consigo próprio, o soldado cumpriu e o preto saltou! E saltou! E Saltou, cada vez mais alto. Enquanto bradava: pára, capitão! Pára, capitão! Pára, capitão! E a chave, envergonhada, girou; para alívio do preto que, a tremer e a destilar e num suor pingado ainda mostrava um terror difuso nuns olhos irados”. No início de Dezembro, há quem tenha visto um foguete luminoso, e Olhero lá vai com Salgueiro Maia e o dito preso, levam pás, picaretas e enxadas, Maia terá confidenciado a Olhero que o preso revelara saber de minas anticarro implantadas na estrada velha de São Vicente. Apanhava a frente, depois de muita confusão ou indecisão o preso afirmou ter-se enganado as minas estavam na estrada velha do cemitério e para lá foram, ali se cavou até à exaustão. Na noite escura ouviu-se o preso suplicar ao capitão para que parasse, depois a voz enfraqueceu, tornou-se um soluço, veio o silêncio. O preso fora executado.
No regresso, quando Olhero perguntou a Maia o que acontecera este terá respondido: “O tratante andou-nos a enganar a ver se caímos numa cilada. Também viu o very light. Mas teve azar e bateu com a cabeça na coronha. Agora dorme… Sempre admirei aquele divertido oficial, a quem devemos a façanha do 25 de Abril. Ele ainda vive no coração de muitos portugueses. Mas dou comigo a perguntar se não teria sido melhor ter corrido o risco de salvar um culpado, do que, impiedosamente, o ter secamente condenado”.
A vida prossegue em Bula, assim chegamos a 1973, a rotina está instalada, Olhero é remetido para Mansoa, sede do CAOP, comandado pelo coronel Rafael Durão, é tempo de novos amores, de escaramuças, corresponde a este período algumas das páginas mais enxutas deste diário, é bem visível o grau de saturação a que chegou o seu autor, há muitas questiúnculas, e em Outubro o furriel de cavalaria entrega o seu espólio na Calçada da Ajuda e parte para Vila Real. Convida todos a contactá-lo para adquirir estes ultrajes, termo polissémico que fala de desastres, desencontros, perdas, actos ignóbeis e até ofensas dificilmente perdoáveis. O autor garante que há um diário por detrás destas penas confessadas, a própria capa será o involucro de tanto ultraje.» Mário Beja Santos, blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
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