“Padre Fontes – O
Romance de uma Vida” de Eugénio Mendes Pinto
«(...) Volto a
Tourém. Quando nevava intensamente era impensável sair da aldeia. Juntavam-se
as pessoas à volta das lareiras de algumas casas, conversavam, comiam e
esperavam que o tempo melhorasse. O gado não saía das cortes. A povoação parava
completamente. Só fumo cinzento no cinzento dos dias dava vida a Tourém. Só o
respiradouro do fogo ajudava a aquecer os corpos. O Inverno era frio, o vento
cortava, a neve chegava a atingir mais de um metro de altura. Ainda vejo
crianças a brincarem quando caía o primeiro nevão. E o boneco de neve imenso
que fizeram junto ao forno comunitário. Os olhos delas brilhavam no frio,
rostos vermelhos, mãos geladas. Matavam saudades do último Inverno caiado a
branco nesse primeiro dia. Depois, recolhiam-se no interior das casas e só
saíam quando o nevão passasse.
O frio
parecia matar. Ficava o boneco sozinho, a sorrir, olhos de castanhas, nariz de
cenoura, boca de um qualquer papel vermelho que decidiam colocar-lhe. Sempre
gostei desta simplicidade aldeã. Eu, nesse primeiro dia de neve, como criança,
pegava nas galochas, capa de burel, luvas, cachecol - bem agasalhado - passeava
nessa alvura. Em passos lentos, a ouvir o som da neve a apertar-se nela mesmo
ao meu peso, subia a um ponto alto para poder ver a brancura da aldeia. Tudo
ficava nesse silêncio de fumo, cheirava a fumo. E a negrura das ruas, das
casas, era encoberta numa vontade de cal. Resplandecia Tourém nessa cor, nessa
nova forma que o tempo lhe dava.
Ficava a olhá-la até não sentir os pés, as mãos, o rosto. Sentia somente o coração a bater. E o cinzento do dia, as nuvens que pareciam encobrir as casas, afastava-se de tanta pureza.
Descobria que tinha de me mover quando, quase imóvel ou incapaz de movimento, ouvia alguém dizer, vai ficar aí a petrificar padre Fontes. Está frio. As palavras repetidas todos os anos do Domingos. Como eu, também subia a morro alto e sonhava nesse olhar.
Ficava a olhá-la até não sentir os pés, as mãos, o rosto. Sentia somente o coração a bater. E o cinzento do dia, as nuvens que pareciam encobrir as casas, afastava-se de tanta pureza.
Descobria que tinha de me mover quando, quase imóvel ou incapaz de movimento, ouvia alguém dizer, vai ficar aí a petrificar padre Fontes. Está frio. As palavras repetidas todos os anos do Domingos. Como eu, também subia a morro alto e sonhava nesse olhar.
Domingos
gostava de escrever e pintar. Desenhava a carvão nas paredes do quarto que
pintava à cor da neve todos os anos para poder recobrir, novamente, todo a
negro com os seus desejos que encantavam de tanta simpatia.
E descíamos os dois, em silêncio. Quando não há nada para dizer, nada se diz. Mantém-se o mutismo que perdura nas palavras do olhar, e essas são eternas.
Tourém encantada no silente momento da primeira água condensada em pequenas estrelas. Tudo deserto e tudo tão limpo, lavado.
Volto a calcar a neve, a entrar no abandono, e sabia que só o tempo decidiria sobre a vida da aldeia. (...)»
E descíamos os dois, em silêncio. Quando não há nada para dizer, nada se diz. Mantém-se o mutismo que perdura nas palavras do olhar, e essas são eternas.
Tourém encantada no silente momento da primeira água condensada em pequenas estrelas. Tudo deserto e tudo tão limpo, lavado.
Volto a calcar a neve, a entrar no abandono, e sabia que só o tempo decidiria sobre a vida da aldeia. (...)»
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Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real... |
Traga-Mundos – lhibros i binos, cousas i lhoisas de l Douro an Bila Rial...
[também disponível de e
sobre o autor os títulos: “Etnografia Transmontana – Volume I – Crenças e
Tradições de Barroso”, “Etnografia Transmontana – 3.º Volume – Cancioneiro
Ancestral Barrosão” de Padre António L. Fontes e Altino Moreira Cardoso, “Medicina
Popular – Ensaio de Antropologia Médica” de António Fontes e João Gomes
Sanches, “Padre António Fontes – Vida e Obra” de João Gomes Sanches; “Misarela,
a Ponte do Diabo” de Padre António Fontes, ilustrações de Alex Gozblau]
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