“Mar Largo” de
Vítor Nogueira
«Depois de ter
escrito, em “Comércio Tradicional” (Averno,
2008), sobre o declínio de certos modos de vida e relacionamento humano nas
cidades do interior, vítimas do progresso económico, Vítor Nogueira regressa a
Lisboa – cidade que já fora o tema inspirador do seu penúltimo livro de poesia: Bagagem
de Mão (& Etc, 2007). Com uma diferença significativa. Enquanto
naquele exercício de deambulação baudelairiana o sujeito poético circulava por
todo o lado (da Baixa a Alfama, de Monsanto ao Bairro Alto, não esquecendo o
Centro Comercial Colombo), em Mar Largo o flâneur instala-se
de armas e bagagens num único sítio: o Rossio, cujo padrão da calçada
portuguesa dá título à obra.
É justamente este «ziguezague de pedra» branco e negro que estrutura o livro. Na primeira parte, Nogueira toma como motivo a história da pavimentação original (iniciada em Agosto de 1848, a mando de Eusébio Furtado), assumindo as vozes e os sofrimentos dos calceteiros à força, um vasto grupo de condenados que saíam com as suas grilhetas da prisão, no Castelo de São Jorge, para simularem, a golpes de martelo e muita pedra assentada, o movimento das ondas no chão de uma das mais belas praças da capital. É esse esforço, essa «energia fornecida à tempestade», que o poeta resgata do esquecimento: «Ninguém quer saber quem somos, / só do que somos capazes».
Na segunda parte, saltamos sete gerações para verificar que ainda há «destroços / do naufrágio» e que o Rossio continua a ser uma «encruzilhada», com outras misérias (os sem-abrigo aconchegados à fachada do Teatro Nacional, por exemplo) e outros desencantos. Num dos poemas, o «sujeito poético» está sentado na esplanada da pastelaria Suíça, subjugado pelo movimento de «homens e viaturas» e pela «cegueira branca de pálpebras e sol». A nordeste da praça, «grande harmónio crioulo que se contrai / e dilata», fica o «coração de Babel», o centro geométrico da desordem linguística e social. O ruído do mundo é ensurdecedor e o poeta integra-o na sua melancólica tentativa de fixar o inapreensível: «De súbito, um improvável grupo de zés-pereiras. / Não há, convenhamos, elegia que consiga resistir / a tantos bombos. Albo lapillo diem notare. / Marcar de novo certos dias com uma pedra / branca, os mais nefastos com uma pedra negra. / Calçada tristalegre de Lisbuna.» E só podia ser assim. Como fica insinuado umas páginas antes, a poesia, «isso de que às vezes nos acusam», nasce das suas próprias limitações e ignora as questões de escala: «Tanto pode ser um murmúrio / como o desabar de uma montanha.»
Avaliação: 8,5/10
[Texto publicado no
número 87 da revista Ler]» [blogue Bibliotecário de Babel, por José Mário
Silva]
Disponível na
Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real... |
Traga-Mundos – lhibros i binos, cousas i lhoisas de l Douro an Bila Rial...
[também disponível do autor
os títulos: “Bagagem de Mão”, “Mar Largo”, “Modo Fácil de Copiar uma Cidade”pela
&etc.; “Que Diremos Nós Que Viva”, “Comércio Tradicional”, “Senhor
Gouveia”, “Segunda Voz” pela Averno; “Coração” livrinhos artesanais pelas artes
d'O Homem do Saco, um poema único, com uma ilustração; “Amanhã Logo Se Vê”
(romance); dvd’s “Lembranças da Casa do Padre Filipe”, “Liceu Velho, Liceu
Novo” e “A Lagoa”, do Museu do Som e da Imagem; participação em “Labrador”,
“Telhados de Vidro” n.º 18 e “Em Lisboa, Sobre o Mar – Poesia 201-2010”]
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