Ao
balcão da livraria, em frente ao computador, estou a escrever de pé. E a ouvir
Zeca Afonso.
Há dez anos, quando abrimos, tinha uma ligação de rede a casa e, aí, sossegadamente, podia trabalhar, podia escrever, podia pensar.
E
fiz tudo isso. Fiz contas, vi catálogos, fiz encomendas, programei actividades.
Acima de tudo, sonhei.
Contingências
da vida acabaram com essa ligação, o que me obrigou a ter de fazer tudo na
livraria. De pé, porque a ergonomia do balcão não permite outra coisa.
E,
de pé, enquanto alinho aqui as palavras, sinto-me como que a escrever uma carta
de despedida. Não querendo, no entanto, acreditar nisso.
Dez
anos, é muito tempo. Pouco, para quem vem da área académica de História. Mas
muito, muito tempo, para quem está, com a porta de uma livraria aberta, na área
geográfica de um Portugal cada vez mais pequenino. E, aqui, fica a minha
homenagem a quem, com sabedoria e, certamente, imenso sacrifício, conseguiu
chegar até hoje tendo começado há muito mais tempo do que eu: Os livreiros
velhos que ainda nos dão palmadas para não desistirmos. Manuel Medeiros,
sempre; no ano passado o saudoso Jorge Figueira de Sousa; este ano, Caroline Tyssen
e Duarte Nuno Oliveira. Não esquecendo a gasolina com que insistentemente nos
incendeia, não sendo velho, mas, mais livreiro do que muitos livreiros, o Luís
Guerra.
O
acto de abrir uma livraria, mesmo há dez anos atrás, é um acto egoísta. E os
pecados pagam-se. Terá havido tempos em que isso seria um negócio. Terá havido.
Hoje (mesmo há dez anos atrás!), abrir uma livraria é uma aventura. Uma
aventura que sai cara, logo, é preciso dinheiro para a manter. Portanto,
vendas.
Com
o paradigma social alterado e adulterado, com o vício paulatinamente incutido
das luzes; das cores; da fartura; do verniz dos shopings e grandes superfícies,
pouco sobra para o bairro. O que sobra não é suficiente porque o povo/cliente
agora é rico. Pelo menos na sua cabeça. Não é modesto. Vive de ilusões que um
dia lhe sairão caras. Já estão a sair! Depois… depois é tarde demais para
arrepiar caminho. E os vícios não se largam assim do pé para a mão.
É
uma sociedade que, com a ilusão da riqueza, empobrece. Finge que está viva. As
escolas fotocopiam descaradamente livros, os professores não os compram, as
bibliotecas não têm dinheiro para o papel, as grandes superfícies, sites na
Internet, grandes grupos, contornam e, impunemente, não cumprem a Lei do Preço
Fixo do Livro que ninguém faz cumprir. O Estado, que era dono dos Correios, a
fazer concorrência directa às livrarias com o dinheiro que delas recebe dos
impostos!!! Porque o pequeno comércio é para abater. Pelo poder instalado que é
o poder do capital sobre o Homem. O poder da polis morreu aqui.
Criatividade
é um neologismo que não aprendi na escola. Desculpem-me os puritanos da língua
se estou errado. Aprendi-o, sim, obrigado pela vida. Para me virar. Para fazer
das tripas coração. Para fazer de uma livraria de província um local
apetecível. Uma livraria com livros, música, artesanato, artes plásticas, chá,
pequenos mimos de memória. Onde se falasse de livros… e de tudo. Ao longo de
dez anos promovi encontros com escritores, actores, músicos, bailarinos, graças
mais à sua generosidade do que ao interesse comercial. E, na esmagadora maioria
das vezes, sem qualquer apoio da respectiva editora.
A
indiferença de pessoas ligadas ao livro, mesmo leitores, é notória na falta de
participação em acções que não sejam mediáticas. Nas actividades de pequenas
livrarias como a minha, como em acções como este Encontro Livreiro, longe dos
holofotes.
Desde
há quatro anos que um pequeno grupo de entusiastas se esforça para unir as
pessoas que têm como principal ponto de união o amor ao livro. Curiosamente,
apesar do grande esforço de promoção e informação, este Encontro Livreiro ainda
não contou, salvo gratificantes excepções, com a participação que não fosse dos
chamados pequenos. Aos grandes – editores, distribuidores, livreiros, mesmo escritores
– parece não interessar este tipo de movimento.
Só
e exclusivamente a nós cabe lutar pela sobrevivência. Talvez seja melhor esses
tais não aparecerem. O Encontro Livreiro transmontano é prova de que vale a
pena lutar.
Bem
gostaria de parafrasear Palmira Bastos: "Morta por dentro, mas de pé, de
pé, como as árvores". Mas, apesar de gostar de teatro, são os livros que
me estão na cabeça – e só me lembro do título do livro de Horace Maccoy, Os cavalos também se abatem.
No
entanto, se o meu ânimo tem esta sequência, e porque o ciclo da vida se
regenera, prefiro transmitir aos outros o contrário: Os cavalos também se
abatem, mas as árvores morrem de pé. É uma questão de escolha: Ser animal ou
vegetal.
Visto,
então, a pele animal da lagartixa a quem cortaram o rabo que fica ainda a
mexer, em pré-morte, isolado do corpo que sobrevive e ainda com a memória vital
deste.
Diz
o rabo da lagartixa, como achega a outras propostas que possam sair deste
encontro de amigos, que talvez (isto sou eu a pensar alto!) que talvez se possa
fazer o seguinte:
1 - Elaboração
de um texto expondo em breves palavras a situação do sector, em que não sejam
esquecidas questões como:
Em
relação aos fornecedores:
-
Extinção da profissão de vendedor que era quem conhecia a realidade local de
cada cliente;
-
Falta de informação editorial atempada. Quantas vezes sabemos primeiro pelos
órgãos de informação o que sai ou vai sair?
-
Venda directa ao público com prazos de entrega inferiores aos do
comércio;
-
Concorrência directa com os clientes em escolas, bibliotecas, feiras;
-
Exigência de valores ou quantidades mínimas de compras;
Em
relação ao poder político:
-
A vergonhosa violação da Lei do Preço Fixo, para o que seria necessário a ajuda
de amigos advogados que estudem os casos de forma a que, posteriormente, se
possa tomar alguma atitude de denúncia ou proposta de alteração da Lei.
2 – Para
enriquecimento, envio desse texto a todas as livrarias de pequena dimensão
conhecidas no sentido do estabelecimento de uma base de dados de contactos
acessível a todos, para troca de informação e experiências, formando uma rede e
tomando como base o blogue do Encontro Livreiro. Desta forma poderíamos ainda
colaborar em aquisições, por exemplo, ou mesmo na organização de
iniciativas:
-
Um cliente pede-nos um livro que não temos mas alguém pode ter – colocamos o
pedido na rede e, quem o tiver, responde, envia, etc.
-
Podemos promover um circuito apresentações com autores ou outras actividades em
várias livrarias.
……………………………
Não
sei se sou árvore a morrer ou cavalo a abater. Para estar aqui, hoje, convosco,
teria de retirar dinheiro aos fornecedores para custear a viagem. Ausente no
corpo mas presente no espírito, optei por ficar em casa.
Perdoem-me
a franqueza e a prosa lamurienta. Logo que me saia uma lotaria qualquer, em que
não jogo, voltarei com mais ânimo. Agora, não consigo.
Razão
têm as finanças para que a profissão de livreiro não conste na sua lista. Os
livreiros não existem no tipo de sociedade para que nos atiraram. Sobramos os
sonhadores.
Sines,
6 de Abril de 2013
Joaquim
Gonçalves
[Texto enviado por e-mail e lido por Rosa Azevedo no IV Encontro Livreiro]
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