Pela
voz da minha mãe, percebi que ainda antes de saber escrever já espreitava, em bicos
de pés, os livros para colorir que, amavelmente, estendiam sobre o balcão da
Mário Péricles, uma livraria de referência na cidade de Bragança, que
entretanto encerrou portas.
Quando
aprendi a ler, não tardei a descobrir o prazer de perder a conta ao tempo,
embrenhada em páginas, à cata de histórias, de novos mundos, de sensações e
observações colhidas pelo autor.
Não
havia, aliás, não há maior alegria do que comprar ou receber um livro. É
essencial saber escolher um título numa panóplia imensa, procurar uma obra que
não entrou no circuito mediático, dar com uma publicação que não é rabiscada
por escritores consagrados, encontrar páginas que nos ensinam algo, que
salvaguardam o que nos preenche ou que se revelam o presente ideal para alguém
de quem gostamos. E nada como poder contar com a sábia ajuda de um livreiro
nestas tarefas.
Assim,
nasceu o meu contacto com as livrarias da região, sedimentado no impulso de
comprar para ler ou para oferecer, sim, porque, para mim, a melhor partilha
ainda acontece na cumplicidade silenciosa de um livro. O atendimento
personalizado, o tempo sem urgências, a prioridade à palavra e a vontade de
conhecer o cliente, as suas necessidades ou expectativas, povoam a atmosfera
destes espaços, tornando-os distintivos.
Para
além desta empatia íntima para com os livros, não deixa de ser curioso que a
minha primeira reportagem que conheceu a tinta foi, justamente, sobre as
livrarias de Bragança, minha terra natal. A inexistência de estabelecimentos
que se dedicassem à venda exclusiva de livros foi o enfoque dado. Por uma
questão de sobrevivência, conjugavam essa vertente com serviços de papelaria,
dos quais, como me asseguraram alguns entrevistados, auferiam mais rendimentos.
Só por alturas do Natal é que as vendas de livros registavam um acréscimo. As
justificações para essa dualidade de oferta surgiam rápidas e certeiras: a
falta de clientes, os primórdios da crise, a concorrência dos hipermercados e a
Internet.
Hoje,
volvidos oito anos, gostaria de perceber se este cenário, traçado com tanto
realismo, se manteve ou se os problemas se agudizaram e, ainda, de que forma é
que se perspectiva o futuro do negócio dos livros em Trás-os-Montes.
Dos
meus tempos de faculdade, recordo com nostalgia os alfarrabistas de algumas
vielas do Porto. Um deles, paredes meias do sítio onde morava, era
inclusivamente transmontano, um mirandelense cheio de orgulho nas suas origens.
Ali, sentia a hospitalidade com que um conterrâneo, mal sente empurrar a porta,
diz sem reservas: «entre quem é». Aquele senhor, já de cabelos brancos, saudava
tão afavelmente quem chegava que era como se entrássemos numa casa familiar e,
com total à-vontade, podíamos percorrer o olhar pelas estantes, serpentear pelo
amontoado de livros no chão, ler as contracapas vagarosamente, optar por levar
ou deixar ficar sem que, por detrás do balcão, houvesse uma expressão de
censura ou de aborrecimento.
Por
cá, fazia-me falta essa proximidade, essa simpatia, essa compreensão tácita,
essa conversa fácil e descomprometida. Felizmente, reencontrei tudo isto em
terras transmontanas. Nos últimos tempos, assisti, presencialmente ou
acompanhando pelas redes sociais, ao surgimento de um novo paradigma de
livraria. Atrevo-me a dizê-lo assim. São espaços que nasceram por amor às
letras, privilegiando (e bem!) as produções regionais, mas congregando outro
tipo de ofertas, capazes de cativar diferentes públicos. São o reflexo do
dinamismo e da visão dos seus mentores, gente com uma filosofia de trabalho
revolucionária. São eles que programam as actividades dos espaços, promovendo,
obviamente, apresentações de livros pela voz dos próprios autores, tertúlias,
saraus e encontros com escritores transmontanos, mas não se ficam por aqui.
Lançam iniciativas em contracorrente, como sejam workshops (de fotografia, de
ilustração científica, de cartonagem, de edição de imagem digital, de como
fazer pão em casa ou compotas e geleias tradicionais, entre outros), cursos (de
iniciação à prova de vinhos do Douro ou como harmonizar vinho com gastronomia),
provas (de méis, de Vinho do Porto), oficinas de escrita, ateliers de expressão
plástica, visitas ao património ou passeios pedestres. Também é frequente ver
estes espaços prestarem-se a servir de palco a exposições (de fotografia, de
pintura, de escultura, de arte digital), a ciclos de cinema, a concertos ou
como promotores de produtos regionais, como sejam as peças de artesanato ou os
vinhos.
Falo,
pois, da Traga-Mundos e da Vila Teca, em Vila Real, da Poética, em Macedo de
Cavaleiros, e da Galeria História e Arte, em Bragança. Têm vindo a afirmar-se
como pólos de debate de ideias, de aprendizagens incomuns, de convívios e de
afectos. Por outro lado, não descuram as ferramentas que a Internet lhes
proporciona, aproveitando para dar visibilidade ao que tão bem fazem através
dos blogues e das redes sociais.
Não
posso terminar sem deixar uma palavra de apreço e de admiração pelas livrarias
centenárias, como o caso da livraria Branco, em Vila Real, por conseguirem
desafiar o tempo e adaptarem-se, sem nunca perderem o que de melhor têm:
pessoas que sabem o que são os livros e que os respeitam em toda a sua
dignidade. Afinal, como escreveu, o padre António Vieira: «o livro é um mudo
que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive».
Da
minha parte, continuo a coleccionar livros para, um dia, ter uma pequena
biblioteca dentro de portas, por isso, a certeza, também, de que continuarei a
vigiar o que se vai fazendo na região a favor do maior benevolente e
incondicional companheiro, aquele que nos une todos aqui, hoje: o livro.
Patrícia Posse,
jornalista (n.º 9322)
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