terça-feira, 26 de março de 2013

O prazer de perder a conta ao tempo...


Pela voz da minha mãe, percebi que ainda antes de saber escrever já espreitava, em bicos de pés, os livros para colorir que, amavelmente, estendiam sobre o balcão da Mário Péricles, uma livraria de referência na cidade de Bragança, que entretanto encerrou portas.
Quando aprendi a ler, não tardei a descobrir o prazer de perder a conta ao tempo, embrenhada em páginas, à cata de histórias, de novos mundos, de sensações e observações colhidas pelo autor.
Não havia, aliás, não há maior alegria do que comprar ou receber um livro. É essencial saber escolher um título numa panóplia imensa, procurar uma obra que não entrou no circuito mediático, dar com uma publicação que não é rabiscada por escritores consagrados, encontrar páginas que nos ensinam algo, que salvaguardam o que nos preenche ou que se revelam o presente ideal para alguém de quem gostamos. E nada como poder contar com a sábia ajuda de um livreiro nestas tarefas.
Assim, nasceu o meu contacto com as livrarias da região, sedimentado no impulso de comprar para ler ou para oferecer, sim, porque, para mim, a melhor partilha ainda acontece na cumplicidade silenciosa de um livro. O atendimento personalizado, o tempo sem urgências, a prioridade à palavra e a vontade de conhecer o cliente, as suas necessidades ou expectativas, povoam a atmosfera destes espaços, tornando-os distintivos.
Para além desta empatia íntima para com os livros, não deixa de ser curioso que a minha primeira reportagem que conheceu a tinta foi, justamente, sobre as livrarias de Bragança, minha terra natal. A inexistência de estabelecimentos que se dedicassem à venda exclusiva de livros foi o enfoque dado. Por uma questão de sobrevivência, conjugavam essa vertente com serviços de papelaria, dos quais, como me asseguraram alguns entrevistados, auferiam mais rendimentos. Só por alturas do Natal é que as vendas de livros registavam um acréscimo. As justificações para essa dualidade de oferta surgiam rápidas e certeiras: a falta de clientes, os primórdios da crise, a concorrência dos hipermercados e a Internet.
Hoje, volvidos oito anos, gostaria de perceber se este cenário, traçado com tanto realismo, se manteve ou se os problemas se agudizaram e, ainda, de que forma é que se perspectiva o futuro do negócio dos livros em Trás-os-Montes.
Dos meus tempos de faculdade, recordo com nostalgia os alfarrabistas de algumas vielas do Porto. Um deles, paredes meias do sítio onde morava, era inclusivamente transmontano, um mirandelense cheio de orgulho nas suas origens. Ali, sentia a hospitalidade com que um conterrâneo, mal sente empurrar a porta, diz sem reservas: «entre quem é». Aquele senhor, já de cabelos brancos, saudava tão afavelmente quem chegava que era como se entrássemos numa casa familiar e, com total à-vontade, podíamos percorrer o olhar pelas estantes, serpentear pelo amontoado de livros no chão, ler as contracapas vagarosamente, optar por levar ou deixar ficar sem que, por detrás do balcão, houvesse uma expressão de censura ou de aborrecimento.
Por cá, fazia-me falta essa proximidade, essa simpatia, essa compreensão tácita, essa conversa fácil e descomprometida. Felizmente, reencontrei tudo isto em terras transmontanas. Nos últimos tempos, assisti, presencialmente ou acompanhando pelas redes sociais, ao surgimento de um novo paradigma de livraria. Atrevo-me a dizê-lo assim. São espaços que nasceram por amor às letras, privilegiando (e bem!) as produções regionais, mas congregando outro tipo de ofertas, capazes de cativar diferentes públicos. São o reflexo do dinamismo e da visão dos seus mentores, gente com uma filosofia de trabalho revolucionária. São eles que programam as actividades dos espaços, promovendo, obviamente, apresentações de livros pela voz dos próprios autores, tertúlias, saraus e encontros com escritores transmontanos, mas não se ficam por aqui. Lançam iniciativas em contracorrente, como sejam workshops (de fotografia, de ilustração científica, de cartonagem, de edição de imagem digital, de como fazer pão em casa ou compotas e geleias tradicionais, entre outros), cursos (de iniciação à prova de vinhos do Douro ou como harmonizar vinho com gastronomia), provas (de méis, de Vinho do Porto), oficinas de escrita, ateliers de expressão plástica, visitas ao património ou passeios pedestres. Também é frequente ver estes espaços prestarem-se a servir de palco a exposições (de fotografia, de pintura, de escultura, de arte digital), a ciclos de cinema, a concertos ou como promotores de produtos regionais, como sejam as peças de artesanato ou os vinhos.
Falo, pois, da Traga-Mundos e da Vila Teca, em Vila Real, da Poética, em Macedo de Cavaleiros, e da Galeria História e Arte, em Bragança. Têm vindo a afirmar-se como pólos de debate de ideias, de aprendizagens incomuns, de convívios e de afectos. Por outro lado, não descuram as ferramentas que a Internet lhes proporciona, aproveitando para dar visibilidade ao que tão bem fazem através dos blogues e das redes sociais.
Não posso terminar sem deixar uma palavra de apreço e de admiração pelas livrarias centenárias, como o caso da livraria Branco, em Vila Real, por conseguirem desafiar o tempo e adaptarem-se, sem nunca perderem o que de melhor têm: pessoas que sabem o que são os livros e que os respeitam em toda a sua dignidade. Afinal, como escreveu, o padre António Vieira: «o livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive».
Da minha parte, continuo a coleccionar livros para, um dia, ter uma pequena biblioteca dentro de portas, por isso, a certeza, também, de que continuarei a vigiar o que se vai fazendo na região a favor do maior benevolente e incondicional companheiro, aquele que nos une todos aqui, hoje: o livro.

Patrícia Posse, jornalista (n.º 9322)

[texto solicitado à autora para servir de mote ao I.º Encontro Livreiro de Trás-os-Montes e Alto Douro e apresentado pela própria no dia 24 de Março de 2013 (domingo), pelas 15h00, na Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro, em Vila Real]

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