Embora
a efeméride tenha passado injustamente despercebida, comemorei, no dia 21 de
Março de 2011, o cinquentenário de compradora de livros. O facto de a escolha
da estreia ter recaído sobre um livro de poemas, O Luar de Janeiro de Augusto
Gil, foi, decerto, mera coincidência pois, que me lembre, ainda se não
comemoravam os dias de tudo e mais alguma coisa. Também me atraiçoa a minha
memória regressiva quando lhe bato ao ferrolho como quem lança um S.O.S. De
onde me terão vindo os 25 escudos da “Balada de Neve” & Companhia?
Nunca
tive essa coisa gostosa de semanada ou mesada. Argent de poche, limitava-se a
uma expressão francesa de que só conhecia o significado. Os meus únicos
proventos, que não chegavam a aquecer as mãos, eram uns miseráveis trocos
escuros provindos da minha actividade de prestadora de serviços à minha mãe,
raramente ultrapassando os cinco tostões, de imediato convertidos em cinco
rebuçados de fruta ou num cúbico caramelo de prata colorida. Um consolo!
O
acto de ir à Livraria Branco com outro fim que não fosse o da aquisição de
material escolar, de passar de um lápis para um livro, constituiu para mim algo
muito sério com gostinho a uma maioridade semelhante à de substituir os
infantis soquetes pelas adultas meias de vidro.
Depois
de Augusto Gil foi a vez de José Régio e de Florbela Espanca, vendidos por
aquela altura respeitável do saudoso Sr. Adriano. Gostava de decorar poemas
para brilhar, histrionicamente, nas lições nº cem. Também fui atacada pelo
vírus dos versos (não da poesia, hélas!) submetidos, subrepticiamente, nas
aulas de Português, ao parecer do saudoso Eduardo Guerra Carneiro, o meu
primeiro crítico literário…
Pede-me
o proprietário desta casa um texto sobre a minha experiência de frequentadora
de livrarias na região, pelo que omito a Coimbra do meu Torga e o Porto da
Leitura e da Bertrand.
Radicada
nesta cidade há mais de 30 anos, é por estas bandas que vasculho a oferta
livreira. Guardo, com a Branco, a fidelidade jurada no tal casamento, apenas
quebrada com pontuais facadas quando uma força irresistível me empurra para
dentro da Bertrand ou quando, numa surpreendente jogada de antecipação, a
Traga-Mundos espicaça o meu telurismo com uma edição de comprovinciano ainda a
cheirar a tipografia.
O
livro democratizou-se, para o bem e para o mal, sustentado por uma estratégia
de marketing que entroniza a mediocridade em escaparates onde, se não nos pomos
a pau, esbarramos ao entrar da porta. Quer isto dizer que a oferta visível pode
desmotivar quem busque aquilo a que é justo rotular de literatura. A par deste
aspecto, temos uma evidência comum a várias vilas e cidades pouco populosas.
Com meia dúzia de leitores/compradores, como haveriam de sobreviver os
comerciantes que teimam em reservar, nas suas lojas, um espaço para a cultura?
Surge assim um hibridismo de oferta onde umas estantes alojam os escritores de
maior ou menor (ou nenhuma) procura para onde nem olha quem vai à procura da
última Caras, de uma raspadinha, de bugigangas, de uns produtos de beleza, de
uns brinquedos, de produtos artesanais ou outros.
Longe
de ser uma crítica, resulta esta achega da observação de uma realidade que veio
para ficar. E também encerra uma palavra de reconhecimento e admiração por
quantos teimam em manter vivo um património indispensável ao aconchego
intelectual de quantos buscam na leitura uma prazer, uma companhia em horas
solitárias, uma inesgotável fonte de aprendizagens, um meio de melhor conhecer
a psicologia humana e o mundo que os rodeia.
O
espaço onde nos encontramos é o exemplo vivo e singular de tentativa de fixação
de leitores através de uma estratégia comercial. Com a particularidade,
assumida orgulhosamente, de se constituir como um polo da complexa identidade
transmontana nas suas várias vertentes, o António Alberto apostou na variedade
e qualidade de produtos da região, hierarquizando-os, de modo a garantir o
protagonismo à literatura que por cá se vai publicando, dela fazendo a rainha
deste “país do vinho e do suor”, como disse António Cabral. A acrescentar o
intimismo do local onde gente de cultura se reúne, sem mordomias nem
salamaleques, antes num espírito de convívio com sabor a serão familiar, em
roda de amigos. Para assistir a apresentação de livros, a sessões temáticas, a
exposições de artes plásticas, a provas de vinhos e a um sem número de
iniciativas nascidas da dedicação e do empreendedorismo de um bem intencionado
vila-realense. Sem grandes ambições nem falsas ilusões quanto à procura de bens
do espírito, tem vindo a conquistar o seu espaço, passo a passo.
Penso
que é esta coexistência pacífica entre produtos para diferentes públicos a
opção para a continuidade do comércio do livro. Como diz o povo, deste modo dá
a risa para a chora…
Mais
intolerante me manifesto com as secções de livros das grandes superfícies.
Misturada com feiras de queijos, de vinhos, de fumeiro e outras, a literatura
perde a sua dignidade. Se as receitas culinárias das apresentadoras de
televisão ou as biografias dos futebolistas não ficam mal no cesto das compras
com chouriços, repolhos, cervejas ou com material desportivo, não acredito que
se sintam confortáveis Lobos Antunes e companhia ao alombarem com a areia do
gato, o garrafão de azeite em promoção, o leve três pague dois de qualquer
coisa e ao chegar-lhes ao nariz o cheiro do bacalhau e de seus colegas isentos
de molho…
Os
tempos que vivemos são pouco consentâneos com o consumo de bens não essenciais,
mas bom seria que todos tivéssemos a capacidade de afogar em linhas e letras
angústias presentes, numa espécie de evasão no tempo, um pouco como diz Padre
António Vieira: “O fim para que os homens inventaram os livros foi para
conservar a memória das coisas passadas contra a tirania do tempo e contra o
esquecimento dos homens, que ainda é maior tirania.”
M. Hercília Agarez,
professora aposentada e escritora
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