quarta-feira, 27 de março de 2013

Espaços de venda de livros ou a luta pela subsistência


Embora a efeméride tenha passado injustamente despercebida, comemorei, no dia 21 de Março de 2011, o cinquentenário de compradora de livros. O facto de a escolha da estreia ter recaído sobre um livro de poemas, O Luar de Janeiro de Augusto Gil, foi, decerto, mera coincidência pois, que me lembre, ainda se não comemoravam os dias de tudo e mais alguma coisa. Também me atraiçoa a minha memória regressiva quando lhe bato ao ferrolho como quem lança um S.O.S. De onde me terão vindo os 25 escudos da “Balada de Neve” & Companhia?
Nunca tive essa coisa gostosa de semanada ou mesada. Argent de poche, limitava-se a uma expressão francesa de que só conhecia o significado. Os meus únicos proventos, que não chegavam a aquecer as mãos, eram uns miseráveis trocos escuros provindos da minha actividade de prestadora de serviços à minha mãe, raramente ultrapassando os cinco tostões, de imediato convertidos em cinco rebuçados de fruta ou num cúbico caramelo de prata colorida. Um consolo!
O acto de ir à Livraria Branco com outro fim que não fosse o da aquisição de material escolar, de passar de um lápis para um livro, constituiu para mim algo muito sério com gostinho a uma maioridade semelhante à de substituir os infantis soquetes pelas adultas meias de vidro.
Depois de Augusto Gil foi a vez de José Régio e de Florbela Espanca, vendidos por aquela altura respeitável do saudoso Sr. Adriano. Gostava de decorar poemas para brilhar, histrionicamente, nas lições nº cem. Também fui atacada pelo vírus dos versos (não da poesia, hélas!) submetidos, subrepticiamente, nas aulas de Português, ao parecer do saudoso Eduardo Guerra Carneiro, o meu primeiro crítico literário…
Pede-me o proprietário desta casa um texto sobre a minha experiência de frequentadora de livrarias na região, pelo que omito a Coimbra do meu Torga e o Porto da Leitura e da Bertrand.
Radicada nesta cidade há mais de 30 anos, é por estas bandas que vasculho a oferta livreira. Guardo, com a Branco, a fidelidade jurada no tal casamento, apenas quebrada com pontuais facadas quando uma força irresistível me empurra para dentro da Bertrand ou quando, numa surpreendente jogada de antecipação, a Traga-Mundos espicaça o meu telurismo com uma edição de comprovinciano ainda a cheirar a tipografia. 
O livro democratizou-se, para o bem e para o mal, sustentado por uma estratégia de marketing que entroniza a mediocridade em escaparates onde, se não nos pomos a pau, esbarramos ao entrar da porta. Quer isto dizer que a oferta visível pode desmotivar quem busque aquilo a que é justo rotular de literatura. A par deste aspecto, temos uma evidência comum a várias vilas e cidades pouco populosas. Com meia dúzia de leitores/compradores, como haveriam de sobreviver os comerciantes que teimam em reservar, nas suas lojas, um espaço para a cultura? Surge assim um hibridismo de oferta onde umas estantes alojam os escritores de maior ou menor (ou nenhuma) procura para onde nem olha quem vai à procura da última Caras, de uma raspadinha, de bugigangas, de uns produtos de beleza, de uns brinquedos, de produtos artesanais ou outros.
Longe de ser uma crítica, resulta esta achega da observação de uma realidade que veio para ficar. E também encerra uma palavra de reconhecimento e admiração por quantos teimam em manter vivo um património indispensável ao aconchego intelectual de quantos buscam na leitura uma prazer, uma companhia em horas solitárias, uma inesgotável fonte de aprendizagens, um meio de melhor conhecer a psicologia humana e o mundo que os rodeia.
O espaço onde nos encontramos é o exemplo vivo e singular de tentativa de fixação de leitores através de uma estratégia comercial. Com a particularidade, assumida orgulhosamente, de se constituir como um polo da complexa identidade transmontana nas suas várias vertentes, o António Alberto apostou na variedade e qualidade de produtos da região, hierarquizando-os, de modo a garantir o protagonismo à literatura que por cá se vai publicando, dela fazendo a rainha deste “país do vinho e do suor”, como disse António Cabral. A acrescentar o intimismo do local onde gente de cultura se reúne, sem mordomias nem salamaleques, antes num espírito de convívio com sabor a serão familiar, em roda de amigos. Para assistir a apresentação de livros, a sessões temáticas, a exposições de artes plásticas, a provas de vinhos e a um sem número de iniciativas nascidas da dedicação e do empreendedorismo de um bem intencionado vila-realense. Sem grandes ambições nem falsas ilusões quanto à procura de bens do espírito, tem vindo a conquistar o seu espaço, passo a passo.
Penso que é esta coexistência pacífica entre produtos para diferentes públicos a opção para a continuidade do comércio do livro. Como diz o povo, deste modo dá a risa para a chora…
Mais intolerante me manifesto com as secções de livros das grandes superfícies. Misturada com feiras de queijos, de vinhos, de fumeiro e outras, a literatura perde a sua dignidade. Se as receitas culinárias das apresentadoras de televisão ou as biografias dos futebolistas não ficam mal no cesto das compras com chouriços, repolhos, cervejas ou com material desportivo, não acredito que se sintam confortáveis Lobos Antunes e companhia ao alombarem com a areia do gato, o garrafão de azeite em promoção, o leve três pague dois de qualquer coisa e ao chegar-lhes ao nariz o cheiro do bacalhau e de seus colegas isentos de molho…
Os tempos que vivemos são pouco consentâneos com o consumo de bens não essenciais, mas bom seria que todos tivéssemos a capacidade de afogar em linhas e letras angústias presentes, numa espécie de evasão no tempo, um pouco como diz Padre António Vieira: “O fim para que os homens inventaram os livros foi para conservar a memória das coisas passadas contra a tirania do tempo e contra o esquecimento dos homens, que ainda é maior tirania.”

M. Hercília Agarez, professora aposentada e escritora

[texto solicitado à autora para servir de mote ao I.º Encontro Livreiro de Trás-os-Montes e Alto Douro e apresentado pela própria no dia 24 de Março de 2013 (domingo), pelas 15h00, na Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro, em Vila Real]

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