“Passos Perdidos”
de Ernesto Rodrigues
Um banco de
investimento quer vender projecto de lei a deputado democrata-cristão há 40
anos sem intervenção no plenário da Assembleia da República. Quem é João Félix
Filostrato? A que se deve esse silêncio? Em iniciativa mediada pela assessora
do grupo parlamentar, Salomé, que promove encontro com o economista-chefe João
Félix Exposto, Nádia e o estagiário João Félix, também narrador, sobressai a
jornalista Joana, por quem passa a história do eleito por Vila Franca e a
solução de alguns enigmas. Na sombra, cresce deputada da oposição, cuja
biografia se enlaça na deste. Como se organiza a queda de um anjo? Entre
comportamentos oblíquos e identidades sempre esquivas, um deputado-borboleta da
extrema-esquerda torna-se vítima de predadoras e perdedoras, que visam vingança
em várias frentes.
Quase dois séculos
de regime parlamentar e discursos inócuos ou repetitivos reflectem outros
tantos passos perdidos que a Constituição de 1975 e legislaturas fracas não
transformaram. Reflexão sobre a democracia em semana pascal, esta fábula
política é salva, no final, por um bem enredado discurso amoroso.
«Este confirmado
romancista teve a coragem e a sageza de satirizar com grande mestria,
acutilância e sentido de opalinidade histórica os tempos hodiernos, no geral, e
os conluios que sempre se estabeleceram entre política e economia, em
particular. Ernesto Rodrigues revela ousadia ao abordar este tema premente na
nossa sociedade e ao pôr a descoberto as teias que são urdidas no santuário da
democracia e que têm enredado o país, desde as sementes de Abril até ao
presente.
O título “Passos
Perdidos” só é identificável pela fotografia do espaço homónimo do
edifício da Assembleia da República que serve de capa ao romance. No entanto,
este título é polissémico, uma vez que perdidos, ou melhor, gorados foram,
também, os intentos dos corruptores.
A obra abre com uma
epígrafe retirada da Arte de Furtar, capítulo LX, “Dos que furtam com
unhas políticas”, que dá, ab initio,
o mote para a trama do romance e permite, segundo cremos, ao leitor inferir o
tema a escalpelizar na obra.
Passos Perdidos erguer-se
como uma obra fortemente estruturada, visto que é composto por dezasseis
capítulos, agrupados em duas partes (cada uma com oito capítulos) – note-se a simetria –, seguidos de um sucinto, mas elucidativo epílogo. Quanto à
estrutura, o romance apresenta duas partes: a primeira subordinada ao título “A
queda de um Anjo”, que, sem dúvida, faz ressoar na memória literária do leitor
a obra homónima de Camilo. Outra ilação que o leitor facilmente estabelecerá
prende-se com a associação de ambos os protagonistas. João Félix Filostrato é,
de imediato, associado à imagem de Calisto Elói de Silos e Benevides de
Barbuda. Contudo, esta associação perde nitidez com o título da segunda parte
do romance, “Redenção”, indicando, desde logo, uma inflexão de conduta em
relação ao modelo literário adotado por Ernesto Rodrigues. Temos, então, uma queda mais metafórica do que real,
uma vez que a mesma não passa de um subterfúgio para desvendar o ardil, por um
lado, e assumir as responsabilidades pretéritas, por outro.
Que Camilo e Eça,
nomeado na obra pelo título do romance “O Primo Basílio” (p. 101),
são vultos a quem Ernesto Rodrigues presta contínua e apurada homenagem
corrobora-o, para além do que já foi dito, o facto de a intriga do romance ser
narrada, nos onze primeiros capítulos, em analepse pela personagem João Felix
Exposto. Este narrador/personagem é fruto de uma relação da juventude do
deputado João Félix Filostrato, que, também, ignorava este facto. O ritmo
cadenciado e preciso da narrativa, mais uma vez a fazer lembrar os dois
romancistas do século dezanove, e o desenrolar programado da história prendem o
leitor ao texto.
O tempo da ação, à
semelhança do que acontece na tragédia, é bastante concentrado em, apenas, nove
dias. O narrador desfila diante dos nossos olhos, como se de uma representação
teatral se tratasse, os acontecimentos que, efetivamente, vão sendo apreendidos
pelo leitor.
Porquê literatura?
Porque o romance está pejado de referências literárias tanto explícitas como
implícitas. Permito-me, apenas, recordar, não querendo ser exaustivo: Camões,
Bocage e Garrett. Termino com a alusão à “Lacailândia”, isto é, Portugal, onde
ressoam ecos da obra A Montanha da Água Lilás de Pepetela.
Todo o romance é um
retrato irónico da sociedade atual, lembrando a arma mais eficaz de Eça. É
patente a intenção do autor em desvelar a realidade portuguesa atual,
recorrendo a truísmos e a provérbios, por vezes alterados, na senda de
Saramago, para provocar no leitor a reflexão, durante o ato de ler, e levá-lo,
como é apanágio do teatro épico, à ação, no final da leitura.
Concluímos,
asseverando que Ernesto Rodrigues não ficou aquém dos dois modelos literários,
que se propôs preitear neste seu livro, uma vez que as personagens de Passos
Perdidos não destoam das que Camilo perpetuou, nos seus romances. Por
outro lado, qualquer leitor mais atento desta obra não hesitará em apelidá-la
de queirosiana, devido à forma como a realidade portuguesa atual, filtrada pela
ironia, se encontra plasmada nele.» Norberto Francisco Machado da Veiga, Doutor
em Literatura Portuguesa, Universidade de Salamanca
Disponível na
Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real... |
Traga-Mundos – lhibros i binos, cousas i lhoisas de l Douro an Bila Rial...
[disponível também do autor
os seguintes títulos: “A Casa de Bragança” (romance), “Do Movimento Operário e
Outras Viagens” (poesia), “Mágico Folhetim – Literatura e Jornalismo em Portugal”
(estudo), “António José Saraiva e Luísa Dacosta: correspondência” (edição), “A
Terra de Duas Línguas – II – Antologia de Autores Transmontanos” coordenação:
Ernesto Rodrigues e Amadeu Ferreira]
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