terça-feira, 3 de março de 2015

Padre Fontes, o romance de uma vida



“Padre Fontes – O Romance de uma Vida” de Eugénio Mendes Pinto

«(...) Volto a Tourém. Quando nevava intensamente era impensável sair da aldeia. Juntavam-se as pessoas à volta das lareiras de algumas casas, conversavam, comiam e esperavam que o tempo melhorasse. O gado não saía das cortes. A povoação parava completamente. Só fumo cinzento no cinzento dos dias dava vida a Tourém. Só o respiradouro do fogo ajudava a aquecer os corpos. O Inverno era frio, o vento cortava, a neve chegava a atingir mais de um metro de altura. Ainda vejo crianças a brincarem quando caía o primeiro nevão. E o boneco de neve imenso que fizeram junto ao forno comunitário. Os olhos delas brilhavam no frio, rostos vermelhos, mãos geladas. Matavam saudades do último Inverno caiado a branco nesse primeiro dia. Depois, recolhiam-se no interior das casas e só saíam quando o nevão passasse.

O frio parecia matar. Ficava o boneco sozinho, a sorrir, olhos de castanhas, nariz de cenoura, boca de um qualquer papel vermelho que decidiam colocar-lhe. Sempre gostei desta simplicidade aldeã. Eu, nesse primeiro dia de neve, como criança, pegava nas galochas, capa de burel, luvas, cachecol - bem agasalhado - passeava nessa alvura. Em passos lentos, a ouvir o som da neve a apertar-se nela mesmo ao meu peso, subia a um ponto alto para poder ver a brancura da aldeia. Tudo ficava nesse silêncio de fumo, cheirava a fumo. E a negrura das ruas, das casas, era encoberta numa vontade de cal. Resplandecia Tourém nessa cor, nessa nova forma que o tempo lhe dava.
Ficava a olhá-la até não sentir os pés, as mãos, o rosto. Sentia somente o coração a bater. E o cinzento do dia, as nuvens que pareciam encobrir as casas, afastava-se de tanta pureza.
Descobria que tinha de me mover quando, quase imóvel ou incapaz de movimento, ouvia alguém dizer, vai ficar aí a petrificar padre Fontes. Está frio. As palavras repetidas todos os anos do Domingos. Como eu, também subia a morro alto e sonhava nesse olhar.



Domingos gostava de escrever e pintar. Desenhava a carvão nas paredes do quarto que pintava à cor da neve todos os anos para poder recobrir, novamente, todo a negro com os seus desejos que encantavam de tanta simpatia.
E descíamos os dois, em silêncio. Quando não há nada para dizer, nada se diz. Mantém-se o mutismo que perdura nas palavras do olhar, e essas são eternas.
Tourém encantada no silente momento da primeira água condensada em pequenas estrelas. Tudo deserto e tudo tão limpo, lavado.
Volto a calcar a neve, a entrar no abandono, e sabia que só o tempo decidiria sobre a vida da aldeia. (...)»


Disponível na Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real... | Traga-Mundos – lhibros i binos, cousas i lhoisas de l Douro an Bila Rial...
[também disponível de e sobre o autor os títulos: “Etnografia Transmontana – Volume I – Crenças e Tradições de Barroso”, “Etnografia Transmontana – 3.º Volume – Cancioneiro Ancestral Barrosão” de Padre António L. Fontes e Altino Moreira Cardoso, “Medicina Popular – Ensaio de Antropologia Médica” de António Fontes e João Gomes Sanches, “Padre António Fontes – Vida e Obra” de João Gomes Sanches; “Misarela, a Ponte do Diabo” de Padre António Fontes, ilustrações de Alex Gozblau]

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