“O Leito e as
Margens – Estratégias familiares de renovação e situações liminares em seis
aldeias do Alto Trás-os-Montes raiano (1880-1988)” de Paula Godinho
A antropóloga Paula
Godinho tenta perceber, num contexto que, nos últimos trinta anos, se vem
distanciando da matriz agrícola, a extensão social da realidade casa, em seis
aldeias do Alto Trás os Montes raiano, no tempo longo que vai de 1880 a 1987,
com uma aproximação até à realidade de patrimonialização actual. (Ana Paula
Guimarães)
«Este é um livro
publicado em Janeiro de 2006 que tem como base um longo e exaustivo trabalho de
campo na “raia” transmontana, desenvolvido entre 1982 e 1991, no qual a autora
aprendeu a falar mirandês, galego e português transmontano. Um trabalho de
campo que continuou e continua, 16 anos mais tarde, elucidando-nos sobre a
diversidade cultural ibérica e as suas transformações nos espaços de fronteira.
O formato base do livro foi a sua tese de mestrado em antropologia social, logo
corrigida e aumentada. O primeiro que ressalta da publicação é a antropologia
histórica que produz a autora, que é já parte da história antropológica da
antropologia portuguesa e, atrever-me-ia, da antropologia disso a que chamamos
Península Ibérica. Mas a autora não nos apresenta uma antropologia histórica
apenas com base no seu trabalho de arquivo, senão que constrói uma antropologia
das memórias sociais, com uso de documentos pessoais, literatura, histórias de
vida e entrevistas em profundidade.
Paula Godinho apresenta, nesta obra, uma
etnografia multi-situada em seis aldeias da raia transmontana que fazem fronteira
com os territórios do Estado espanhol. A autora, ao adoptar este procedimento
metodológico, dá um salto qualitativo com respeito aos trabalhos já clássicos
de Brian O´Neill, Joaquim Pais de Brito e outros, o que sem dúvida reforça o
trabalho com “autoritas” e, também, com um quadro comparativo alargado. Este
longo e dilatado processo de observação participante, com método comparativo,
vê-se reforçado, ainda mais, com o rigoroso trabalho de arquivo. Através deste,
e do seu cruzamento com a realidade observada, o leitor pode encontrar um
quadro comparativo de tipo sócio-histórico (ex. estratégias de casamento,
demografia...) que nos ajuda a entender melhor processos como o despovoamento
do interior português. O excelente trabalho de Paula Godinho pode ser classificado,
também, como uma etnografia de Trás-os-Montes, tornando-se incontornável para
qualquer estudioso ou investigador que pretenda trabalhar lá. Ao mesmo tempo, a
obra de Paula Godinho enquadra-se numa etnografia da fronteira luso-espanhola,
dos seus olhares cruzados, das suas ambiguidades e das suas práticas sociais.
Esta é uma etnografia que a autora chama de “identidades de orla”. Nelas têm
uma especial relevância as relações que galegos e portugueses mantiveram na
“raia” durante o último século, e o papel dos estados espanhol e português em
desconfiar, travarem e limitar estas. Assim, a obra converte-se em leitura
obrigatória para os investigadores sociais galegos que queiram compreender e
interpretar o problema histórico da relação com Portugal e os portugueses.
Torna-se por isso, num trabalho muito original, ao ter focado as relações com
os territórios ibéricos de Castela e especialmente a Galiza. A estrutura da
publicação está organizada em sete capítulos: Introdução, contexto, comunidade
e relação com a terra, gravidez e nascimento, casamento, velhice, morte e
herança, grupos juvenis e festa dos rapazes.
No primeiro capítulo, a autora
mostra-nos sobre uma “mesa nortenha” o problema de investigação: a ideologia da
“casa” e a sua transformação com a emigração dos anos 1950, 60 e 70. Para isso
convida ao banquete um leque de autores incontornáveis: João de Pina Cabral,
Brian O´Neill, Carmelo Lisón Tolosana e outros. O resultado, que vem a seguir,
é muito enriquecido pelo diálogo com esses autores e vem logo a seguir. No
segundo capítulo, a autora caracteriza as povoações estudadas. Por um lado,
lamentamos que numa obra publicada em 2006, os dados demográficos de evolução
da população só atinjam o ano 1988, mas fica bem demonstrado que o povoamento e
o despovoamento do interior rural português são fenómenos históricos. Por outro
lado, queremos sublinhar que o leitor que vive e conhece Trás-os-Montes vai
questionar o nome real das aldeias estudadas, pois a autora, seguindo
princípios éticos para garantir a confidencialidade, vai utilizar topónimos
fictícios. Se bem, é certo, que quem conhece o terreno que a autora estuda vai
acabar por descobrir o nome real das aldeias, ajudado também pelas fotografias
do fim da publicação. É este um procedimento diferente do historiador, e
pessoalmente pensamos que se Paula Godinho colocasse no texto os nomes reais,
as pessoas das comunidades estudadas não se sentiriam ofendidas pelas
informações e interpretações da autora.
O capítulo terceiro é uma magnífica
apresentação da transformação da estrutura social rural transmontana.
Utilizando o critério básico da propriedade e o uso da terra, cruza este com
uma caracterização de tipos sociais (exemplo: lavradores, proprietários,
jeireiros, criados, caseiros, rendeiros, meeiros, cabaneiros, pastores,
vagamundos, ciganos). Este capítulo é um bom contributo para o questionar das
imagens de homogeneidade das comunidades rurais transmontanas, tópico que não
escapa a esta análise crítica de Paula Godinho. Os capítulos quarto, quinto,
sexto e sétimo abordam os ciclos vitais e as trajectórias biográfico-rituais
das aldeias estudadas. Aqui, são analisadas as estratégias de controlo da
transmissão da propriedade através da herança, as mães solteiras, o
apadrinhamento, a bastardia. A utilização de literatura oral, literatura
escrita e etnografias constróem uma triangulação que ilumina, desde vários
focos, o problema em causa. A autora empenha-se e consegue com grande
brilhantismo, demonstrar que as aldeias nunca foram universos sociais fechados,
analisando as estratégias de casamento: a endogamia de aldeia, a isogamia, o
“casar acima” e outras. Também analisa o celibato, o retardo no casamento e as
modalidades de residência (ex.: a residência nato-local pós-casamento). Não
deixa tampouco de fora os prelúdios e rituais de iniciação ao casamento, o
namoro, passagens de grande beleza etnográfica, nos quais a autora aponta as
mudanças sociais desde o século XIX, em que o grupo doméstico desempenhava um
papel mais importante na eleição do cônjuge, até aos tempos estudados pela
autora, em que a comunidade e a livre eleição são também importantes.
No
capítulo sexto, Paula Godinho apresenta uma antropologia da velhice, da morte e
da herança como sistema de transmissão de patrimónios. Aqui, analisa a herança
pós-mortem, existente até os anos 1970, como uma estratégia de conservação
indivisa do património familiar e como garantia dos cuidados dos filhos aos
pais durante a sua velhice. No capítulo sétimo, a autora faz uma antropologia
da juventude e de alguns rituais de afirmação da mesma como por exemplo as
festas dos rapazes. Na conclusão e no posfácio escrito de 2005, a autora aponta
alguns caminhos para continuar a investigação: o despovoamento, a urbanização
de núcleos médios como Bragança ou Chaves, a continuidade da emigração, os
“fogos apagados” ou vivendas sem gente, 11 meses por ano, a mudança
tecnológica, o problema do desenvolvimento, as mudanças nos padrões de consumo
e a patrimonialização das ruralidades. Em suma, uma obra que actua como espelho
e que nos ensina a compreender melhor e a reflectir sobre o que fomos e estamos
deixando de ser. Uma obra imprescindível que é já um ponto de referência na
antropologia portuguesa e ibérica.» Prof. Dr. Xerardo Pereiro, UTAD
[Barrosanis]
Disponível na Traga-Mundos
– livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real... |
Traga-Mundos – lhibros i binos, cousas i lhoisas de l Douro an Bila
Rial...
[disponível também da autora
os seguintes títulos: “Mundo Rural – Transformação e Resistência na Península
Ibérica (Século XX)” com Dulce Freire e Inês Fonseca e “Festas de Inverno no
Nordeste de Portugal – património, mercantilização e aporias da cultura popular”]
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