“Com os Holandeses”
de J. Rentes de Carvalho
«Sobre o clima, os
costumes, as manhas, a bruteza, os vícios, a má comida... A lista começou com
Júlio César, alongou-se no decorrer dos séculos, tem casos extremos como o do
mal-agradecido Voltaire que, em vez de dar graças pelo refúgio oferecido,
sintetizou venenosamente os Países Baixos em "Canards, canaux et
canailles". Jesuíta e diplomata, António Vieira disse pior, mas
diplomaticamente. De facto são muitos os críticos mordazes de um país em que
outros só vêem campos de tulipas, moinhos a rodar serenamente, montes de
queijo, diques, água, abundância de belas raparigas loiras e desempenadas.
Assim, o optimista Ramalho Ortigão escreveu a suave aguarela que, para muitas
gerações, funcionou como relato exemplar de um país exemplar. O meu caso
difere.»
Com os Holandeses,
já um clássico do seu género, não poderia vir até nós num momento “europeu”
mais propício do que este, sendo ainda muito mais do que um ensaio sobre uma só
nação estrangeira: poderá ser lido no nosso país como uma espécie de compêndio
das atitudes historicamente cultivadas a norte sobre os povos do sul, as mais
velhas nações que civilizaram a “Europa”, mas que hoje estão desgraçadamente no
olho do furacão financeiro e económico, e sobretudo olhados com a suspeita de
sempre — malandros, esbanjadores, indisciplinados e vivendo segundo valores sociais
suspeitos. Não creio tratar-se de um retrato cruel de um dos países mais
pacíficos dos tempos modernos, a Holanda, mas sim uma espécie de ajuste de
contas por parte de um grande autor português após anos e anos de ter sido, em
todos os sentidos humanos e culturais, o outro. (...)
O autor aqui nunca perde o seu equilíbrio emocional ou a inteligência com que
desmonta o “carácter” colectivo — conceito sociológico desde há muito desacreditado,
mas que ainda poderá servir de paradigma analítico, nem que seja só para gozo
literário — dos seus anfitriões. Mais do que castigar os holandeses, Rentes de
Carvalho simplesmente aponta-lhes o dedo na cara, e recorda-lhes amenamente que
há outras maneiras de pensar e estar na vida, ou que uma suposta “virtude”
cultural ou social sua poderá muito bem ser considerada “defeito” pelos outros,
mesmo que vivendo a dois passos na mesma pequena península asiática. O humor
destas páginas é imparável, como que a dizer aos próprios leitores daquele
país: olhem cá, nada disto me mata ou me retém na minha caminhada de cidadão
consciente, mas esses ares de superioridade generalizada e indefinida incomodam
imigrantes como eu, que muito mais mundo têm visto e vivido ao longo de toda a
História. Desde a ética comercial do dia a dia à santidade da religião, desde a
dedicação às mais estranhas e banais causas em suposta defesa de um bairro
residencial seu à salvação dos povos menos felizes a milhares de quilómetros
nos continentes menos desenvolvidos do que a terra das tulipas e abaixo do mar,
Rentes de Carvalho mantém a sua discursividade serena, nunca abandonando ou
renegando ser, uma vez mais, o outro, nunca aceitando, do mesmo modo, um
estatuto de inferiorização da sua ancestralidade. Frequentemente, como seria de
esperar, Com os Holandeses refere-se a um Portugal então sob a ditadura,
deprimida e pobre, ou na confusão kafkiana, nas palavras de outro autor, que
foram os primeiros anos da nossa libertação, nada escondendo, nada negando.»
Vamberto Freitas, Portuguese Times
Disponível na Traga-Mundos
– livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real... |
Traga-Mundos – lhibros i binos, cousas i lhoisas de l Douro an Bila
Rial...
[também disponíveis as
seguintes obras do autor: O Rebate”, “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia”,
“Mazagran”, “La Coca”, “A Amante Holandesa”, “Com os Holandeses”, “Tempo
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