“Etnografia
Transmontana – Volume I – Crenças e Tradições de Barroso” de António Fontes
O Barroso é ainda
um dos lugares no qual podemos entregar o tempo à magia da memória do passado e
às manifestações religiosas e profanas que continuam cimentadas no presente.
Neste primeiro
volume, o percurso etnográfico revolve o fio à meada das crenças e tradições,
perdidas e usadas, passando pelas sombras do diabo, mezinhas e bruxarias,
definhando o aspecto lúdico do dia-a-dia até à santidade dos dias e suas
festas, posfaciando na sabedoria popular cromatizada através dos ditos do povo.
«É por isso que
subo nos outeiros e grito: vinde ver o mundo a acabar», apesar de ficar
registado neste trabalho de campo a bom tempo.
Biografia: António
Fontes nasceu em Cambeses do Rio, Montalegre, em Fevereiro de 1940.
Terminou o curso de
Teologia no Seminário de Vila Real em Junho de 1962. Foi pároco, de 1963 a
1971, em Pitões das Júnias e Tourém e, de 1966 a 1971, em Covelães. É
actualmente, e desde 1971, padre nas freguesias de Mourilhe, Meixide,
Soutelinho da Raia e Vilar de Perdizes, no concelho de Montalegre.
Fundou o
jornal “Notícias de Barroso”. Licenciado em História pela Universidade do
Porto, é autor de vários trabalhos de recolha etnográfica e investigação nas
áreas de Antropologia, Arquitectura, Etnografia e Música. Organizou a
representação de «O Auto da Paixão» e vários congressos internacionais:
Arquitectura Popular, Caminhos de Santiago, História Medieval. Organiza, desde
1983, os Congressos de Medicina Popular de Vilar de Perdizes, que anualmente
levam a esta aldeia do concelho de Montalegre milhares de participantes.
Está representado
nas seguintes antologias: “As Chegas de Bois” (organizador), “Trás-os-Montes
e Alto Douro e Da Literatura Popular à Literatura Infantil”. É autor
das obras “Etnografia Transmontana”, “Os Chás dos Congressos de Vilar
de Perdizes”, “Aras Romanas e Terras de Barroso Desaparecidas”, e
co-autor de vários títulos, nomeadamente “Medicina Popular”, “Mitos,
Crenzas e Costumes da Raia Seca”, “Misarela – A Ponte do Diabo”.
«Não sei se haverá
alguém que tanto como António Lourenço Fontes tenha chamado a atenção dos
portugueses e dos estudiosos de outras nacionalidades para as características,
por vezes bem singulares, da cultura barrosã. Através dos livros, do seu jornal
“Notícias de Barroso”, de conferências e entrevistas, dentro e fora do país, de
colaboração em filmes, de uma vida paroquial aberta ao meio, do seu trabalho de
assessor cultural na Câmara Municipal de Montalegre, de numerosas acções de animação
e estudo, nos domínios do artesanato, das tradições, de tudo o que é
propriamente popular, trate-se de jogos, arquitectura, teatro, religiosidade ou
medicina, tem ele conseguido atrair a curiosidade, o carinho e admiração de
muita gente pela sua terra, que até ali vai de longada, pondo olhos e ouvidos
nas coisas, não raro embevecidamente.
«Entre quem é» –
diz ele, se lhe batem à porta da residência de Vilar de Perdizes, uma
construção tipicamente transmontana, logo franqueando aos olhos ávidos de repasto
cultural salas e saletas, quartos, cozinhas e lojas, tudo abundantemente
guarnecido, abarrotado de livros e cadernos, documentos de vária origem como
estatuetas, quadros, peças de artesanato e outras relíquias. Naquela casa tinha
vivido o Padre Domingos Barroso, um homem tão devoto dos santos como dos
encantos da sua terra e que era especialmente versado em matéria de cinegética.
Tanto ele constituiu para António Lourenço Fontes uma sombra tutelar que
diligenciou para que no largo fronteiro lhe fosse erguido um monumento. Lá
está, bem significativo na sua simplicidade. Desse sacerdote não recebeu,
porém, mais do que um incentivo. A pesquisa e a recolha sistemática de mitos e
ritos, usos e tradições, que dão um rosto à gente barrosã, estavam ainda por fazer.
Escreve neste
livro: «Metia-me medo, por não haver quase nada escrito sobre tudo isto, que
foi para mim floresta virgem que tive de explorar.» E a verdade é que explorou,
sem bravatas, antes com uma paciência modesta, como é aliás do seu temperamento.
Menos preocupado com desenvolvimentos
teóricos e questões
taxinómicas do que com o registo atento, tanto quanto possível cingido ao
essencial e praticado à luz e segundo a ordem da experiência, com o sacrifício
de certo arrumo, acabou por nos deixar um trabalho que fascina pelo
despretensiosismo e pelo toque certeiro no que os etnólogos consideram
imprescindível e fundamental para as suas teses mais engenhosamente concebidas,
ainda que por vezes marcadamente subjectivas e especulativas e, por isso, discutíveis,
neste jogo de esquivanças e probabilidades que é o real para toda a ciência.
O campo de
observação de António Lourenço Fontes é o da etnografia, no sentido em que C.
Levi-Strauss a definiu: «A etnografia consiste na observação e na análise de
grupos humanos considerados na sua particularidade e visando a reconstituição,
tão fiel quanto possível, da vida de cada um deles.» Retratar e biografar o
povo de Barroso foi essa a intenção de António Lourenço Fontes, como
transparece do plano traçado para cuja execução trabalhou, «sabe Deus com que
dificuldades». Mas as monografias comportam sempre riscos de efectualidade,
mesmo tendo em conta o bom senso e a argúcia do critério adoptado, a dedicação
e a vantagem de pesquisar a partir de dentro, como é o caso, dado que o autor
nasceu no coração de Barroso, onde após os seus cursos em Vila Real e no Porto
continuou a viver. Outros etnógrafos tiveram de suportar dificuldades de
aceitação pelas comunidades visadas, como sucedeu por exemplo a Malinowski na
Melanésia.
Um risco
etnográfico é o que se prende com problemas de diacronia e dialéctica. Toda a
descrição nesta matéria é selectiva e deixa pressuposta uma teoria, por mais
geral que ela seja. Ora, quanto a isto, o primeiro obstáculo a transpor é o de
conferir o grau de actualidade ou não de um fenómeno, os factores e o processo
da sua evolução e ainda o que há nele de núcleo permanente, com relevo para os
vectores de articulação com os outros fenómenos da mesma estrutura ou sistema.
António Lourenço Fontes tem consciência disso, expressando a vontade de
«recordar tanto as tradições vivas, como as que já morreram»; e em algumas
páginas caracteriza «o homem barrosão e o seu feitio», o que não o impede de
adoptar seguidamente o método cumulativo, mais de acordo com o retrato do que
com a biografia, resultando assim um painel de cromatismos insinuantes, como se
o papel deste etnógrafo fosse o de coleccionar revérberos. É um caminho, entre
outros, que deixa por apreender o que no fundo é inapreensível, isto é, o espaço
de instabilidade latejante que se situa, relativamente a um costume, a meio
caminho do que foi e do que é – um espaço onde pulsam determinações endógenas e
exógenas cuja fixação descritiva é uma aventura, a menos que do facto social se
persiga uma visão hipotético-dedutiva, atenta às formas globalizantes, muito em
conformidade com o método estruturalista. A este método porém, que conduz a uma
ciência de rigor, escapam os conteúdos vivos, a mobilidade quer ontológica quer
factual do ser, tendo-se como certo que a observação e a theoria realizadas a
partir do exterior são sempre neste aspecto ou naquele algo deformantes. E daí
que o formalismo estruturalista se venha considerando ultrapassado.
António Lourenço
Fontes opta pelo registo directo e breve, sem outro enquadramento pontual que
não seja o decorrente da localização e o de encostar uns aos outros os factos
mais semelhantes entre si, segundo uma concepção da etnografia tradicional.
Certo. O leitor e o antropólogo ficam naturalmente satisfeitos com a oferta de
textos puros, lavados: que sejam um e outro a operar induções e deduções. Como
se dissesse: o povo de Barroso é mais ou menos assim, nos domínios que
investiguei; façam agora o favor de comparar e tirar conclusões. Nem sequer,
como acontece com «o direito sobre as moças da terra» e as «chegas», ele nos
diz claramente até que ponto o costume persiste na forma apresentada ou como
possivelmente evoluiu e por que motivos. Como se também nos quisesse dizer: em
Barroso foi ou é assim; venham cá e vejam como as coisas, apesar de inevitáveis
transculturações, ainda conservam peculiaridades que as identificam e nos
identificam.
O que em toda esta
obra se subentende não é difícil de perceber, se nos ativermos a afirmações
vigorosas como esta: «O homem transforma o ambiente, mas deixa-se impressionar
fundamente por ele.» Barroso tem uma configuração geográfica, um clima, um modo
de ser, um estar longe de tudo menos de si, uma história cerzida de tradições
tão enraizadas na memória e na vida que, mau grado os ventos desculturantes que
sopram de várias direcções, irá manter a sua identidade cultural. Identidade
para já bem patente naquilo a que Kardiner chama «personalidade de base, comum
a todos os barrosões, onde quer que se encontrem, um suplemento de alma que dá
vida a estes dois livros, em que se abre uma consciência generosa, a ser ouvida
não só pelos seus conterrâneos, mas por quantos assumem a cultura como um dos
valores mais preciosos do existir, cépticos felizmente em relação à exclusiva
via economicista da paz e da felicidade. Em livros assim tocam os sinos a
rebate.» António Cabral, do Prefácio
Disponível na
Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real... ... |
Traga-Mundos – lhibros i binos, cousas i lhoisas de l Douro an Bila Rial...
[também disponível do autor
os títulos: “Medicina Popular – Ensaio de Antropologia Médica” de António Fontes e
João Gomes Sanches, “Padre Fontes – O Romance de uma Vida” de Eugénio Mendes
Pinto e “Padre António Fontes – Vida e Obra” de João Gomes Sanches]