“Passagens e
Afectos” de João de Deus Rodrigues
O título “passagens
e afectos” sugere o fluir temporal, e até espacial, ligado pela coordenativa
copulativa “e” aos afectos, o que, numa leitura global, depreende que “as
passagens” suscitam novos sentimentos. Disso mesmo dá conta o sujeito poético,
pois, desde o acto da sua concepção: “que fui em campo aberto” (pág. 25), marcando
o seu nascimento: “E tudo aflito,/ À espera do meu primeiro grito” (pág. 27),
tudo ficou registado no tempo até ao final da obra, reaparecendo sob a forma de
um “eu” maduro, agarrado às memórias.
Este livro
fornece-nos o percurso de um homem escondido por do detrás sujeito poético e
não seriam necessárias as notas complementares para o leitor captar o
sofrimento e a dor vividas em primeira pessoa, pois a poesia, embora depure
sentimentos, é também o palco privilegiado para os plasmar. No poema “Um outro
Adeus ao Mar” a interrogação final dos versos: “Te pedi em oração/ Que levasses
meu ofertório/ Ao concílio dos deuses,/ Para que protegessem os filhos meus?”
revela já abandono do sujeito por parte do Mar, esse mesmo “eu” que o escolhera
para confidente e agora, desiludido, reitera: “Toma então/ o pesar verdadeiro,
/ De quem te quis dar/ Um filho marinheiro,/ Antes da morte o levar.” (pág.
53). Certamente que este filho é o símbolo de tantos outros anónimos que
partiram, como, aliás, Fernando Pessoa evocou: “Quantas noivas ficaram por
casar/ Para que fosses nosso, ó mar!”. Mas a verdade é que a Dedicatória
contempla, em primeiro lugar, a “memória do meu filho”. São estas e,
certamente, outras passagens que geram novos afectos que estão concentrados neste
título, pois a construção da obra assinala várias etapas, espécie de capítulos
muito abrangentes, em que o humano, a natureza e o divino se fundem, como
podemos observar no poema “Ausência” onde a ave surge como mensageira da
felicidade na terra: “Porque as aves são criaturas místicas, / Com asas
celestiais, que Deus criou,/ Para alegrarem a Terra e o Céu” (pág. 68).
Estes poemas são
simples, mas portadores de uma enorme sensibilidade e de um amor intrínseco à
memória dos lugares e das coisas. O Douro serpenteado suspenso: “Era ali o meu
Douro” (pág. 109); o Mar com os seus mistérios: “O Mar!/ - O que é o Mar, avô?”
(pág. 45); as conversas com os avós, papel hoje já assumido pelos ex-filhos:
“Que haja em casa uma avó querida, / Capaz de criar os três!” (pág.116); a
Terra estreitamente ligada à função materna: “Por isso é a ti, Mãe-Terra /
Berço da terrena criação/ Que faço solene pedido.” (pág.91); a Água como fonte
essencial da vida: “E sem água/ O sangue da Terra/ Não existirá vida.” (pág.
93), e associada à chuva: “Chuva, filha predilecta do Mar.” (pág. 95), ao
granizo: “O granizo era como balas/ De guerreiros de pedra.” (pág. 96), e à
neve: “que coisa tão bela,/ Era a neve a dançar” (pág. 97).
Os elementos da
Natureza citados formam campos lexicais muito mais vastos que adornam a poesia,
enquanto protagonistas dos cenários envolventes: assim, junto ao mar, temos as
ondas, as sereias, os marinheiros e as praias; na terra, ou nas serranias,
encontramos uma vegetação rica com flores campestres e silvestres que, por
vezes, acolhem os grilos e as formigas e atraem outros insectos alados, tais
como as abelhas, as borboletas e as mariposas. E destes versos sobressai ainda
o belo cromático dos amores-perfeitos ou do jasmim que se associam a uma enorme
colecção de aves: o melro, o pardal, o pintassilgo, o tentilhão, a carriça, a
rola. O mesmo olhar analítico e perspicaz de coleccionador devotado a escolher
os melhores versos para a sua colectânea: versos, produto de experiência e de
sabedoria calcinada pelos tempos e pelos espaços mundividenciais que cercaram o
sujeito de enunciação; versos de amor e de gritos... versos que transformaram
um homem de armas em poeta. Porque, apesar do “se” presente nos versos: “Ah se
eu fosse poeta, / Minha mãe” (pág. 29), o sujeito revela-se sem hesitações e
afirma-se como um grande poeta; talvez tenha sido a vida que o prendeu à magia
das palavras e, por elas, tenha conquistado o sentido do belo e o êxtase
contemplativo do universo, segredos muito bem guardados, mas também desvendados
por Sophia de Mello.
Este livro, na sua
simplicidade, reúne reminiscências de poetas de todos tempos: desde Antero de
Quental, Augusto Gil, Cesário Verde até Sophia de Mello e, como não poderia
deixar esquecido, seu conterrâneo Torga. De uns, o poeta colheu o colorido, de
outros, o jeito de fazer versos, de outros, a inspiração, e de Torga a veia
telúrica que fez de Trás-os-Montes uma terra singular.
A relação existente
entre o “eu” e o “tu”, por vezes personificado, bem como o tom confessional e o
discurso dialógico impregnam a poesia de ritmos e toadas disfóricas, de acordo
com a intencionalidade comunicativa subjacente.
São poemas feitos
das memórias que acompanharam o crescimento do ser e souberam esperar pela hora
de nascer, através da palavra - o arco-íris, a presença dos avós, as paisagens,
os lugares -, são imagens presentificadas a preencher o caminho percorrido e a
assinalar o que ficou por aprender: “E interrogo o espaço percorrido, / Mas ele
não me sabe responder./ Porque no tempo fui consumido, / E com tanta coisa por
aprender!” (pág. 108).
Esta partilha de
memórias com o leitor é, sem dúvida, um gesto de amor e de coragem que João
Rodrigues decidiu assumir... e cada um saberá receber, consoante a sua entrega.
Afinal, todos estamos expostos às passagens e aos afectos!
Júlia Serra (Professora
e crítica literária), in “Jornal dos Poetas e Trovadores”, n.º 50,
Outubro/Dezembro 2009, 3.ª Serie, Ano XXIX.
Disponível na
Traga-Mundos – livros e vinhos, coisas e loisas do Douro em Vila Real... |
Traga-Mundos – lhibros i binos, cousas i lhoisas de l Douro an Bila
Rial...
[disponível também do
autor: “Histórias Maravilhosas da Terra Quente”, “Outras Histórias de Gente
d’Além Marão” e “”A Terra de Duas Línguas – II – Antologia de Autores
Transmontanos”]