Quando nascemos no campo rodeiam-nos de seguida os ambientes e as coissa m,ais antigas e essenciais. A terra, o vento, os rios, os pássaros, as árvores, as casas. Ama-se espontaneamente aquilo que os rodeia. Compreende-se, por intuição, os trabalhos misteriosos da terra e do céu. Os dias sucedem às noites. As árvores crescem. Os pássaros nidificam. Os animais procriam.
Um dia aparece um livro. Por puro acaso, ou desleixo, já lhe faltam o título, o nome do autor e as primeiras páginas. É o primeiro livro fora da escola e da catequese. É um livro à solta. Duas ou três crianças juntando esforçadamente as suas letras acabam por devorá-lo. É Verão. As crianças levam o livro para um lugar fresco. Para debaixo dessas ramas de ervilhas que crescem desenfreadamente com as dos feijoeiros pelas estacas, cheias de flores brancas e vermelhas. Jamais saberão o título daquele livro incompleto, mas foi por ele que alcançaram pela primeira vez o fascínio do mar que as montanhas circundantes não deixavam ver.
Não era nenhum livro de Melville, de Stevenson ou de Conrad. Era uma história simples para adolescentes sobre um homem em perpétua aventura pelos mares. Quando finalmente se julgava a salvo numa ilha e ia espetar a sua bandeira, apercebia-se de que estava, afinal, sobre o dorso de uma grande baleia e logo recomeçava a aventura.
Ao juntar as letras, ao articular as palavras e seguindo as frases, as crianças viam produzir-se um mundo fabuloso, inquietante, logo posto em movimento pela magia, lembrando o jogo de juntar água ao carboreto para produzir uma imensa luz azulada. Com o tempo, a leitura transformava-se em vício desejoso de íntima acção e deslumbramento. O fascínio descobre-se então em cada palavra, prescrutando os seus diversos significados, escolhendo-se os impulsos, provocando-lhes limites e extravasamentos, sentimentos inesperados, relacionamentos, surpresas conforme a sua situação e confrontos.
Manuel Hermínio Monteiro