sábado, 10 de abril de 2021

In Memoriam de Otílio Figueiredo

 


«A escrita, o livro, a leitura: um mundo! Vasto e complexo mundo! Quem encontrarei disponível para me acompanhar num breve olhar sobre ele?

Mundo habitado. O olhar encontra imediatamente os escritores e os leitores. Depois, entre a escrita e o livro, está o editor com o seu trabalho emérito. Entre o livro e a leitura estou eu, o livreiro. O escritor publica a escrita, o editor publica o livro, o livreiro “publica” a leitura

Manuel Medeiros, o Livreiro Velho (da livraria Culsete, Setúbal)

 

na livraria traga_mundos afirmei por diversas ocasiões que foi ali, com o Dr. Otílio de Figueiredo e na Livraria Setentrião, que aprendi a LER...

 

é consensual que a apetência pela Leitura é potenciada por um ambiente favorável e motivador. nasci em Moçambique e em casa sempre vi Livros, também jornais e revistas, e cresci vendo os meus pais e irmã lendo, sendo portanto natural que cedo iniciasse as leituras. lembro-me de, com os meus pais, visitar diversas livrarias de Lourenço Marques, cujo ambiente me ficaram na memória.

 

em 1974, a Revolução dos Cravos, aconteceu quando estava de férias na aldeia dos meus pais e família em Portugal, e não mais pude regressar. frequentei a 4.ª classe na Escola Primária de Cabêda. em casa dos meus avós, maternos e paternos, havia Livros. o acontecimento era a visita periódica de uma das carrinhas bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian ao largo da aldeia, com um mundo mágico e diversificado de Livros.

 

a frequência do 2.º e 3.º Ciclos e Secundário, levou-me para Vila Real. o quiosque do Pelinhos, era um local de trocas de patinhas, coboiadas, mónicas, astérix, tintin, spirou, luckyluke – com a preciosa generosidade de António Ferreira, um promotor da Leitura. frente ao Liceu Camilo Castelo Branco existiu uma biblioteca Gulbenkian – que frequentei. no ensino tive a boa ventura de ter alguns excelentes professores que nos incentivavam o gosto pelo Leitura – para além do programa formal de estudos.

 

não recordo o que me fez entrar na livraria Setentrião mas sei que fiquei de imediato encantado por aquele senhor de porte carismática e cabeleira branca: Otílio Figueiredo – quase sempre rodeado por outras personagens em tertúlias que pareciam de infindáveis sabedorias. médico, escritor, músico, caricaturista, pintor, conversador, tolerante, republicano, humanista.

para mim foi o primeiro Livreiro que conheci, ou seja, capaz de levar um adolescente a descobrir e a ler também a Literatura. recordo que me fez descobrir – e ler a obra completa de – Jorge Amado, com a particularidade de me fazer falar sobre cada obra lida e aconselhando a seguinte.

assim como de outros autores, desde os locais aos universais. também era um autor e editor generoso, oferecendo exemplares da sua obra.

 

o prosseguimento de estudos, universitários, e a actividade associativa, profissional, cooperação, fez-me andar por aí: Lisboa, Coimbra, Baixo Alentejo, Alemanha, Guiné-Bissau.

em 2011 regressei à região origem da família. a busca de espaços comerciais em Vila Real, coincidiu por acaso com a disponibilidade dos números 24, 26 e 28 da rua Miguel Bombarda... onde outrora esteve a Livraria Setentrião – talvez o Destino tenha algo a dizer...

 

em Novembro de 2011 abri a porta da Livraria Traga-Mundos, um espaço temático: aos autores e obras de e sobre Trás-os-Montes e Alto Douro. ao longo destes mais de 9 anos de existência, o espaço foi-se enchendo de autores e suas obras, numa riquíssima diversidade.

de Otílio Figueiredo, iniciamos com alguns exemplares recuperados no armazém da cave e pela generosa oferta de familiares seus. há medida que se vão esgotando, procuramos em colegas alfarrabistas para que a sua presença não se esgote – incluindo “ABC das Mães” –, cientes que um autor desaparece se a sua obra não se mantém disponível. estamos conscientes que por mantermos ali uma Livraria, é no dia-a-dia que preservamos também o legado e a lembrança de Otílio Figueiredo.


antónio alberto sampaio figueira alves

livreiro, sociólogo

livraria traga_mundos

Cabêda, 31 de Janeiro de 2021

[Colecção Tellus n.º 42, 16 de março de 2021, Grémio Literário Vila-Realense]

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