António Alberto Sampaio Figueira Alves
Livreiro, Sociólogo
Livraria Traga-Mundos
VILA REAL, CAPITAL DE TRÁS-OS-MONTES... EM DECADÊNCIA!
Quando a livraria Traga-Mundos abriu portas em Vila Real a 5 de Novembro de 2011, foi numa conjuntura de severa recessão económica mundial e do país. A cidade apresentava alguns sinais de desestruturação, nomeadamente do centro histórico, não tanto pela crise em si, mas consequência de um processo de desqualificação económica e urbana anterior, que não mais conseguiu recuperar – mesmo quando a economia nacional ganhou alguma recuperação.
Vila
Real é uma cidade de serviços – como capital centraliza alguns serviços da
administração pública – e, essencialmente, de comércios que criavam o
rendimento de diversas famílias locais – a zona industrial está longe da
dinâmica e prosperidade digna de uma capital de Trás-os-Montes e Alto Douro!
Sendo historicamente uma capital, possuiu (ou possuía) uma diversidade e riqueza de património edificado (casas brasonadas, igrejas, conventos), que foi deixando perder – algumas em ruínas, outras adulteradas para outras ocupações e funções, outras simplesmente destruídas!
Desde
2011 que a livraria Traga-Mundos, situada na zona do centro histórico – uma
classificação formalizada pelo PDM – numa rua de comércio tradicional, que esta
decadência se tem acentuado – nomeadamente por política negligente do novo e
actual executivo municipal.
UMA POLÍTICA QUE PRIVILEGIA O COMÉRCIO DE GRANDES SUPERFÍCIES DE PODEROSOS GRUPOS ECONÓMICOS
Nos últimos anos adensou-se a aposta deste município pelo comércio das grandes superfícies: para além do centro comercial, o apelo aos hipermercados – parece que para se sentirem “capital” têm que atrair todas as “marcas” deste tipo de comércio! Não será por acaso, como já chamamos a atenção, que por todas as entradas e acessos da cidade proliferam dúzias de placas indicando as diversas marcas destas grandes superfícies... e não há uma única placa a indicar “centro histórico” – sinónimo de comércio tradicional – como existe em tantas outras cidades.
É
assim clara a opção pelos grandes grupos económicos, cujos lucros se encaminham
para o exterior, não têm retorno e investimento na cidade – também o argumento
dos empregos é uma demagógica falácia: todos sabemos que representam emprego
precário, de baixos salários, degradantes, etc.
É
assim clara, ao invés, o desinteresse do município pelo tecido comercial e
local: o que representa o emprego e o rendimento de diversas famílias da
cidade. O exemplo que salta à vista é o da Rua Direita, outrora o centro da
dinâmica económica da cidade, onde a maior parte das lojas se encontra encerradas
ou em dramática decadência!
UMA POLÍTICA DE DESTRUIÇÃO DO PATRIMÓNIO EDIFICADO, DA MEMÓRIA HISTÓRICA... e das árvores!
Depois do 25 de Abril, a cidade sofre o impacto da construção desenfreada, sem planeamento, sobretudo na forma de prédios de betão e cimento – nomeadamente nos anos 80. Desde a fileira de prédios sobre a margem do rio Córgo – a avenida 1.º de Maio –, com o objectivo de ocultar a cidade velha; ou com a destruição da Vila Velha, com a intenção da construção de um espaço de estacionamento – qual é a cidade que destrói o local da sua origem! –; ao despropositado conjunto de prédios do Pioledo – construir em altura no topo da cidade! Escreve Francisco José Viegas, na obra “Regresso Por Um Rio”: «a mais banal e feia cidade do Norte, Vila Real».
No culminar e entrada para o século XXI, os responsáveis pela cidade são presenteados por programas da administração central, com verbas da Comunidade Europeia – nomeadamente o programa Polis –, cujas regras obrigam a uma racionalização e melhoramento do espaço urbano. Foram os anos da construção das rotundas, que melhoraram a circulação automóvel; o aprazível eixo de lazer e ajardinada natureza do Parque Córgo; culminando na preciosa edificação de duas infra-estruturas estruturantes da Cultura da cidade: o Teatro Municipal e a Biblioteca Municipal Dr. Júlio Teixeira.
Nos
últimos anos, regressa a política do bulldozer e do camartelo, de destruir
alguns espaços da cidade para construir de novo, com a falaciosa justificação
de modernizar e melhorar “as acessibilidades” das pessoas – mais se justifica
novamente pelo aproveitamento político de verbas disponíveis e disponibilizadas
por programas nacionais de financiamento europeu. Este procedimento inclui a
completa destruição de uma avenida central, outrora o centro do convívio e
sociabilização da população – o que incluiu a destruição de centenas de metros
quadrados de calçada portuguesa e o abate de todas as árvores existentes, que
acompanharam várias gerações...
Aliás, este ímpeto de devastação não tem poupado dezenas e dezenas de árvores por toda a cidade, que são abatidas e/ou mutiladas por podas criminosas... [1]
Numa
das obras mais recentes de viagem por Portugal, com mais de seis centenas de
páginas, a cidade de Vila Real apenas é referida em meia dúzia de linhas, com o
seguinte teor: «Vila Real é uma cidade construída sobre um promontório entre os
rios Corgo e Cabril, com a presença das serras do Marão e do Alvão bem visíveis
no seu horizonte a oeste. A cidade lidou mal com a voracidade dos tempos pós
revolução de abril de 1974. O seu centro histórico foi praticamente todo
destruído, restando apenas alguns edifícios religiosos. A cidade medieval
desapareceu, mas mantém-se a singularidade geográfica do lugar.»[2]
O CASO DA PANREAL – versus Lidl
A luta pela manutenção e reabilitação da PanReal, que é descrita nesta obra, deparou com o desinteresse e, digamos que, desleixe do próprio Município – e até de uma adivinhável conivência, neste contexto de privilegiar, como já referimos, o comércio de grandes superfícies de poderosos grupos económicos internacionais. Recordamos que a destruição de um edifício emblemático do arquitecto Nadir Afonso – cuja notável importância é descrita nesta obra – ocorreu para a ampliação do parque de estacionamento do hipermercado Lidl!
Vila Real perde assim uma valiosa oportunidade de se juntar a Boticas (Centro de Artes Nadir Afonso) e Chaves (Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso) e usufruir de um circuito de actividades e visitantes. Um pólo de interesse com uma potencialidade de atracção muito superior ao que representam os seus insignificantes museus locais – ou qualquer dos hipermercados e os seus parques de estacionamento...
Da
Cultura nesta cidade restam a Biblioteca e o Teatro como oásis, apenas porque
as equipas que as gerem não mudaram – não aconteceu, a muito custo, o job for
the boys –, com mais de uma década de experiência... e êxito reconhecido! Com
idêntico desinteresse e desleixe assistiu este Município ao encerramento e
desaparecimento de outros locais emblemáticos: a Zona Livre, o centenário Club
de Vila Real, as tabernas Alemão, Baca Belha e Tasca Maldita – como que não lhe
interessam colectividades livres e locais de ágora e reflexão...
A LIVRARIA TRAGA-MUNDOS COMO LOCAL DE MEMÓRIA
A livraria Traga-Mundos desde que abriu em 2011 tem sido local de Memória, pautando algumas das suas actividades pela evocação e tributo à história da cidade de Vila Real – também recordando locais de comércio tradicional.
Desde logo pela sua localização: onde outrora existiu a Livraria Setentrião, do saudoso Dr. Otílio Figueiredo, é no dia-a-dia que preservamos o seu legado e lembrança.
No dia 1 de Agosto de 2019, realizamos a tertúlia “88 anos, uma história de vida”, de homenagem António Ferreira, vulgo Pelinhos, com a preciosa ajuda da família, no dia do seu aniversário. Com casa cheia de amigos, foi noite de afectos e de testemunhos, incluindo dois depoimentos de escritores que louvaram a sua acção em prol da leitura e da literatura.
Em 2019 incorporamos mesas e cadeiras do extinto café Excelsior e a 25 de Outubro realizamos a tertúlia “Memórias do Café Excelsior”, resultando numa noite de estórias e histórias intermináveis[3].
Foi
neste contexto que o espaço da livraria Traga-Mundos acolheu, a 24 de Abril de
DA DECADÊNCIA DE VILA REAL, COMO CAPITAL DE TRÁS-OS-MONTES...
Vila
Real é uma cidade enquadrada por uma situação privilegiada de Natureza, com a
serra do Marão de um lado e a serra do Alvão do outro – em grande parte
classificada e protegida como Parque Natural. São territórios de riqueza em
fauna e flora, também com aldeias que preservam a sua identidade e modos de
vida, gentes e tradições.
Neste
contexto, a Biodiversidade foi outrora eleita como temática prioritária para
promover a cidade: turismo da natureza, trilhos pedestres, fotografia, etc. O
Parque Córgo poderia ser o eixo ideal para integrar as dinâmicas da parte nova
da cidade, que se expandiu para a outra margem do rio, e a zona histórica.
Seria uma aposta com sustentabilidade duradoura, com futuro – e pelo futuro…
No entanto, em anos mais recentes a tónica foi colocada em eventos efémeros de mero show off: as corridas de automóvel, os directos em programas televisivos pimba (pagos), concertos na denominada “praça do município”, marchas lisboetas de santo antónio, são joão portuense, fogos de artifício, fogueiras, etc. #acelera
A
Vila Real restará a sua localização: o de ser um ponto central para se alcançar
a oferta cultural e patrimonial que se foi consolidando em outras cidades e
regiões em redor:
Em Mateus, o Palácio e a actividade cultural da respectiva Fundação. Em São Martinho de Anta, o Espaço Miguel Torga. Em Mirandela, o Museu da Oliveira e do Azeite. Em Bragança, o Museu do Abade de Baçal, Museu Ibérico da Máscara e do Traje, Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, o Centro de Fotografia Georges Dussaud. Em Amarante, o Museu Amadeo Souza Cardoso, a Casa da Granja – Museu Eduardo Teixeira Pinto. Em Pedras Salgadas, o Parque Termal – spa & eco houses. Em Vidago, o Parque Termal e o Vidago Palace. Em Boticas, o Centro de Artes Nadir Afonso, o Museu Rural. Em Chaves, o Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, as Termas & Spa. Em Galafura, o Miradouro de São Leonardo. Na Régua, o Museu do Douro. Em Lamego, o Santuário de Nossa Senhora dos Remédio, o Museu, a Catedral. Na Galiza, os exemplos da mobilidade urbana sem carros, de Allariz e Pontevedra. No Porto...
E
em Vila Real? São cada vez menos os pontos de interesse turísticos – segundo um
técnico, é uma cidade onde uma visita se realiza em menos de uma hora, ou seja,
que se faz de passagem. Em vez de se aumentar os pontos de interesse... têm
diminuído! – até as árvores...
Consequência
sobretudo dos últimos anos. Por destruírem património. Por apagarem a memória
histórica. Por descaracterizarem a cidade. Por retirarem valor turístico. Por
abaterem e mutilarem árvores. Por arruinarem – impunemente – o futuro de
próximas gerações de vilarealenses...
Vila Real, 27 de Dezembro de 2020
[1] «Com uma insensibilidade a
que infelizmente estamos habituados e a uma ignorância que é filha dessa mesma,
consorciada do atrevimento, começou-se há bastante tempo a ir derrubando velhos
plátanos só com o pretexto de que com isso se facilitava o trânsito acelerado.
Esta prática devastadora merece uma explicação;
para quem não conheça o seu móbil comum, diremos que se derrubam árvores por
quatro razões principais, a saber: 1.ª, porque quem ordena não sabe que a
árvore é uma criação perfeita que mantém sobre todas as suas admiráveis
qualidades até morrer, e portanto não só toda a vida fornece sombra aos justos
como também, noutro sentido (figurado), faz sombra aos espíritos tacanhos que
nunca conheceram qualquer forma de perfeição que seja e por isso se exasperam
com inveja das árvores, só lhes querendo mal; 2.ª, porque deitar abaixo uma
árvore é fácil, rápido e flagrantemente reconhecível, o que dá ao derrubador a
sensação de, com simplicidade, haver conseguido uma vez na vida «fazer alguma
coisa que se veja»; 3.ª, porque arrancar árvores introduz nos lugares de onde
saem, imediatamente, um aspecto que, por não ser devido a elementos que levaram
muito tempo a formar, por isso mesmo merece logo o título de novidade ou
modernismo, sem preocupação ou reconhecimento se o que se acabou de fazer ficou
melhor ou pior, mas que mitiga, entretanto, o prurido dos que confundem o corte
de uma árvore com a ablação de um quisto enfadonho; 4.ª e última, englobando ao
mesmo tempo o mais mesquinho e o mais grave dos motivos: cortam árvores porque
se pode então vender a sua madeira – prémio vil mas muito superior ao pouco
valor que lhe atribui a mentalidade de quem as derruba; e cortam as árvores
porque nunca lhes disse ou explicou o valor educativo que essa admirável
criatura encerra!» Raul Lino, “Arquitetura, Paisagem e a Vida”, in
Boletim. Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, n.º 1-3, (Jan-Mar 1957)
[2] “Viagem Maior” de Duarte Belo e João Abreu, Museu da Paisagem, dezembro de 2020.
[3] «Porque el Café Excelsior, en Vila Real, no es café cualquiera. El
Café Excelsior, pese a su anonimato provincial y transmontano, que son dos
formas de olvido, es un de los cafés más hermosos, más grandes y decadentes de
cuantos el viajero ha visto viajando por Portugal. Y eso que ha visto unos
cuantos, especialmente en Lisboa.
Dividido en dos partes, como ordenaban
las leyes, una para el café propiamente dicho y otra para la sala de juegos, el
Café Excelsior es un local tan antiguo que parece ya un museo de si mismo. De
madera todo él (vieja madera bruñida, de tanta usarla y fregarla), con blancas
mesas de mármol y ventanales inmensos, todo cuanto hay dentro de él: la
cafetera, el reloj, la barra, el escudo del Sport Clube Vila Real, hasta los
propios clientes que ahora están mirando el fútbol (en una televisión tan
antigua como las fotos que la rodean), parece formar parte del pasado. El mismo
largo pasado que transcurre lentamente entre las mesas y que se solidifica y
entanca en el salón interior donde se alienan desde hace un siglo los
contadores de bolas y las mesas de billar. Cuatro mesas gigantescas, cosidas y
recosidas, que comparten el espacio con los baños y un lavabo y con los viejos
carteles que advierten a los usuarios: «Não fassa do jogo de bilhar uma prova
de força. O bilhar é um jogo de precição e
intelegença», «Cada rasgão no panho do bilhar, 150 escudos», «Preço da hora de
bilhar, 8 escudos» (debía de ser hace años), etcétera. La verdad es que, más que un café, el
Excelsior parece, como pensó el viajero al entrar, un museo de sí mismo.» Julio
Llamazares, “Trás-os-Montes (Un viaje portugués)”, Alfaguara, p. 332
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