conversa com José
Pinto de Sá | stand 22 e 23 livraria traga_mundos | Feira do Livro de Évora
José Pinto de Sá
nasceu na Beira (Moçambique) em 1948. Por oposição à guerra colonial, abandonou
muito jovem os estudos e exilou-se durante sete anos na Europa, exercendo as
mais variadas profissões.
De regresso a Moçambique em 1974, optou pelo jornalismo. Produziu milhões de
caracteres de texto para quase todos os suportes, entre reportagem, crónica,
ficção, crítica, comentário político…
Em 1985, em Maputo, foi um dos fundadores do grupo de teatro Tchova Xita Duma,
no qual trabalhou como dramaturgo e encenador durante uma década. Fez
dramaturgia para teatro radiofónico e assinou guiões para cinema e fotonovelas.
Traduziu mais de uma dezena de livros, de inglês e francês. Em 2013, publicou
na Companhia das Ilhas a colectânea de contos Os filhos de Mussa Mbiki.
“Atuns de aquário
& outras estórias”
No cinquentenário
da Independência, Moçambique tem um terrível balanço a fazer, mas o exotismo
não serve. Com que voz se narra um país de guerras e fomes endémicas onde uma
frota atuneira enferruja no porto há dez anos, sem ter pescado um único peixe?
Por outras palavras, para que serve um escritor num dos países mais atrasados
do planeta, com 15 milhões de analfabetos e 15 livrarias?
Excerto
«O lixo, que ninguém recolhia há semanas, amontoava-se nos passeios, disputado por
corvos e ratazanas. Exalava um fedor intenso, muito mais forte que o costumeiro
odor da noite, cocktail de frangipani e esgotos a céu aberto.
Assim chegámos à Praça de África, o ponto mais perigoso do percurso. O Papá
espreitou, fez-me sinal de que o caminho estava livre. Pensei «O kota não vê um
palmo diante do nariz», mas ele virou a esquina e segui-o. E fui eu que caí.
Levantei-me dorido e humilhado. Tropeçara num cadáver estendido no passeio, um
jovem de calças pretas, camisa branca e lacinho. Talvez um empregado de mesa
que recolhia a casa depois do trabalho. Já lá não chegou. Se dobrasse a esquina
um minuto antes, ou um minuto depois, não seria apanhado no fogo cruzado. Mas
foi, sabe-se lá porquê, se é que há um porquê. Agora está ali estendido, com
metade da cabeça a menos. «Já é tarde e o João nunca mais chega» (ou «Já é
tarde e o Salimo nunca mais chega») estará a dizer a mãe, ou a namorada, sei lá…
Havia outros cadáveres espalhados pela praça, um soldado e cinco ou seis civis,
inchados, grotescos, cobertos de moscas, cada qual no seu charco de sangue meio
lambido pelos cães. Sobre eles pairava, adocicado e nauseante, o cheiro a morte.»
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